Só alguém como ela, nascida em Las Barranquillas, sabia dar valor às acomodações que recebera na casa do Sr. Velásquez. Era grata pelo quarto, pelo emprego, pelo silêncio quase permanente do idoso, que preferia calar-se a ter que se dirigir a ela ou a qualquer outro com a voz arrastada pelo Parkinson.O quarto claro e o pequeno banheiro acoplado cheiravam a alfazema. Ali, Encarnación se lembrava com mais brandura da infância, das roubalheiras do pai, das rezas da mãe, de quem herdara a crença. Desde pequena, sentia-se atraída pelas imagens cuidadosamente limpas dos santos mantidos em um oratório de madeira carcomida. E enquanto os irmãos corriam atrás de uma bola velha, ela brincava com as figuras miúdas de gesso que lhe faziam companhia naquela vida dura.
Interrompendo as memórias, prestou atenção ao som irregular que saía da boca do Sr. Velásquez, um arquejar que ela nunca ouvira antes. Acostumada apenas aos tremores sem som que sacudiam o idoso, assustou-se com o ruído incomum. Aproximando-se dele, perguntou-lhe o que estava sentindo. Mas o homem apenas fechou os olhos, sem dizer nada. Pegando o aparelho de pressão ao lado da poltrona, colocou-o gentilmente no braço do idoso.
— 17 por 10... Muita alta. Vou ligar para o Dr. Ramirez — disse para si mesma.
Sentiu a mão do Sr. Velásquez agarrando seu braço, fazendo seu corpo tremer junto com o dele.
— Não!
— Como não? O Dr. Ramirez foi claro: se a pressão subir, eu tenho que ligar para ele.
Sem soltar-lhe o braço, o velho ergueu com dificuldade a outra mão e apontou para a televisão à sua frente. A reportagem estava no fim, mas Encarnación voltou-se a tempo de ver, na tela, a foto de um menino pequeno, com cerca de cinco anos.
“... e se alguém tiver alguma pista do paradeiro do menino Juanito, entre em contato com uma delegacia de polícia ou com a nossa emissora.“
O Sr. Velásquez estava desolado. Os olhos marejados mostravam que havia se emocionado com o sumiço da criança. Sem perder mais tempo, ela colocou sob a língua dele um pequeno comprimido. Pouco depois, percebendo que a respiração do idoso havia se acalmado, e que ele cochilava, ligou o equipamento eletrônico de escuta que ficava no bolso dele e retirou-se para o seu quarto, levando na mão o par do aparelho de escuta. Esse fora o jeito encontrado pelo Dr. Ramirez para que ela pudesse controlar o idoso à distância, já que ele não gostava que ninguém o vigiasse de perto.
Sentada na cama, tentou retomar a leitura do romance que começara na véspera, mas seus olhos não absorviam uma linha sequer, desobedientes. Sentiu vontade de rezar, embora aquela não fosse a hora habitual em que fazia as suas orações. Tentou mais uma vez a leitura, mas sem sucesso. Voltou, então, os olhos para o velho oratório de madeira que trouxera consigo, única lembrança da mãe. Se não leio, rezo, pensou, levantando-se sem pressa. Fez o sinal da cruz já em frente às três prateleiras abarrotadas de imagens. O que será que vocês querem uma hora dessas, hein? Então, seu olhar estacou na imagem envelhecida da Virgen Del Pilar. Surpresa, deu-se conta de que o pequeno Jesus de gesso havia desaparecido dos braços da madona. Procurou cuidadosamente a peça no oratório e, depois, por todo o quarto, sem encontrá-la. Pensou em perguntar ao Sr. Velásquez se ele havia pegado a imagem por algum motivo, mas logo percebeu que não era uma boa ideia. O velho tinha Parkinson, mas não era demente.
Voltando à sala, encontrou novamente a televisão ligada. A foto de Juan, o menino desaparecido, estava em todos os canais: “...vestindo short preto, camisa azul-claro...”. Aborrecida, repreendeu-o suavemente, mas ele não pareceu se importar. Desistiu de convencê-lo. Era seu dia de folga e ela não queria perder mais tempo. Como fazia sempre, esperou apenas pela chegada do filho do Sr. Velásquez e saiu discretamente, deixando sobre uma mesinha na sala os remédios do idoso com instruções detalhadas.
Os parques e museus madrilenhos eram a sua paixão. Escolhia sempre um deles para visitar nos dias de folga, não se importando em repetir o passeio de vez em quando. Sem família havia muitos anos, e com poucas amizades, transformava as folgas em prazer. Aquele dia tinha sido destinado ao Real Jardín Botánico, do qual jamais se cansava de apreciar as árvores bem cuidadas, os caminhos floridos e as esculturas majestosas.
Um vento forte a envolveu e a echarpe que trazia no pescoço voou, desengonçada. Parece uma pipa, pensou, olhando o pedaço de pano acinzentado no ar. Finalmente, o objeto pousou em um gramado mais à frente e ela caminhou até lá, abaixando-se para pegá-lo. Engastalhada nas franjas do pedaço de pano, seus dedos sentiram alguma coisa dura. Um segundo depois, segurava entre as mãos trêmulas a imagem do pequeno Jesus que deveria estar no colo da Virgen del Pilar, em seu quarto, na casa do Sr. Velásquez. Não pode ser, não pode ser! Sentindo-se mal, saiu do parque tonta.
Em casa, cumprimentou rapidamente o Sr. Velásquez e seu filho, surpresos por vê-la de volta tão cedo. Já em seu quarto, retirou da bolsa o pequeno Jesus, limpou-o com a ponta da echarpe e o encaixou com perfeição no colo da santa. Não bastasse o inexplicável dos acontecimentos, ela percebeu que algo mais estava errado. Chegando bem perto da figura de gesso que acabara de encontrar, apavorou-se. Diferentemente de antes, a pequena imagem vestia agora short preto e camisa azul-claro, como... como...
— Algum problema, Encarnación? — quis saber o Sr. Velásquez, que tinha vindo atrás dela em sua cadeira de rodas.
Ela hesitou. Não queria ser chamada de maluca. Mas depois decidiu que seria melhor não mentir. Sem acreditar no que ouvia, ele tentou acalmá-la.
— Deite um pouco. Mais tarde nós vamos tentar entender esse mistério.
Mas não houve explicação. Nem naquela noite e nem nas próximas. E a rotina de silêncios, lentamente, reinstalou-se na casa.
Um mês depois do incidente, Encarnación estava mais tranquila, embora seu coração batesse acelerado a cada vez que se aproximava do oratório. Era fim de tarde e ela se levantou para rezar um pouco, como todos os dias. Empalidecendo, olhou em desespero para a Virgen de la Cabeza, que ficava na prateleira do meio. Faltava-lhe nos braços o Menino Jesus, a exemplo do que ocorrera com a Senhora do Pilar. Com a vista turva, chamou o Sr. Velásquez, sem se importar que a atitude pudesse ser considerada inconveniente. Assustado pelo tom da voz dela, o idoso veio logo, encontrando-a chorando e tremendo muito. Apontando o oratório, ela repetia:
— De novo! De novo!
Uma hora mais tarde, medicada pelo Dr. Ramirez, Encarnación sentou-se ao lado do patrão na sala, sonolenta por causa do calmante que tinha sido obrigada a tomar.
— Você devia descansar — disse-lhe o idoso.
Ela se recusou. Apenas fechou os olhos e encostou o corpo no espaldar da poltrona que ladeava a dele. Então, subitamente, abriu os olhos e perguntou, com a voz amedrontada:
— Alguma outra criança desapareceu?
Sim, mais um menino havia sumido em Madri; outra criança de cinco anos. Com medo de que Encarnación o impedisse de assistir ao noticiário, o Sr. Velásquez não lhe contara nada.
— O que o menino vestia? — ela quis saber.
— Calça azul, blusa amarela... Acho que era isso.
Sem nenhum comentário, ela deu boa-noite e recolheu-se ao seu quarto, nervosa. No dia seguinte era sua folga semanal.
***
Encarnación amava o Museo del Prado com um amor que se costuma dedicar somente aos seres vivos. Dizia que ali havia mais vida do que em muitas casas espanholas. Mas, naquele dia, não estava conseguindo se concentrar nas obras. Sentia-se inquieta, cheia de pressentimentos. No entanto, depois de um tempo passeando pelas salas do museu sem que nada de mais acontecesse, resolveu ir embora, aliviada. Faltava visitar apenas a sua obra predileta, antes de voltar para casa. Dirigiu-se ao magnífico óleo de El Greco, El caballero de la mano en el pecho, e ergueu os olhos para a tela que sempre a comovia. Horrorizou-se. Em vez de estarem voltados para frente, os olhos do caballero miravam tristemente o chão logo abaixo da moldura. Agachando-se, pegou a pequena peça de gesso no piso em frente ao quadro: um Menino Jesus de calça azul e camisa amarela, que guardou rapidamente na bolsa.
Em casa, estranhamente calma, colocou a pequena figura de gesso nos braços da Virgen de la Cabeza. Em seguida, sentou-se na beira da cama, pensativa.
— Encarnación, Encarnación! — ouviu a voz fraca e arquejante do Sr. Velásquez pelo aparelho eletrônico. — Acharam o Juanito, acharam o coitadinho! Morto! Assassinado!
Recobrando-se da apatia, ela correu para a sala, mas a reportagem já havia acabado.
— Onde? — perguntou ansiosa ao idoso.
A hesitação do Sr. Velásquez a inquietou ainda mais.
— Onde? — insistiu.
— No Real Jardín Botánico — ele disse, por fim. — E nas mãos dele... Nas mãos dele havia uma imagem... da Virgen Del Pilar.
Antes de voltar para o quarto, pediu licença ao patrão para fazer uma ligação telefônica. Assim que desligou, ajustou o aparelho de escuta do idoso e foi deitar-se.
Na manhã seguinte, o Sr. Velásquez tossiu e arquejou bem perto do aparelho, como fazia sempre que queria chamar a atenção de Encarnación. Mas a moça não apareceu. No quarto dela, ninguém parecia ter dormido. A cama, arrumada como sempre; a cômoda, com meia dúzia de objetos; o banheiro, asseado e cheirando a alfazema. Ele já se preparava para deixar o quarto, irritado com aquele sumiço sem aviso, quando deu com os olhos no oratório. Não, não era impressão sua. Alguma coisa estava diferente. Aproximando-se o mais que pôde, olhou para o alto, para a última prateleira do móvel velho. Uma virgem que nunca estivera ali, mas que ele conhecia mais do que todas as outras, ninava em seu colo dois meninos. O de short preto dormia, sorrindo, e o de calças azuis acarinhava o rosto da Virgen de la Encarnación em silenciosa adoração.
Na sala, a televisão ligada falava de uma história urbana:
“Foi preso hoje o assassino dos meninos Juanito e Ramón. Segundo a polícia, um telefonema anônimo deu a pista do local em que poderia ser encontrado o corpo do segundo menino desaparecido. Os policiais prenderam o assassino no momento em que ele deixava os subterrâneos do Museu de El Greco, onde, lamentavelmente, havia acabado de matar o pequeno Ramón. Assim como aconteceu com Juanito, o menino tinha entre as mãos a imagem de uma madona...”
12 comentários:
Instigante e surpreendente, como sempre. Além das personagens extremamente bem construídas, um enredo que prende o leitor. Adorei!
credo, que história mais imaginativa! que anda lendo? vou levar este vocábulo que nunca tinha lido : Engastalhada
beijo
Obrigada, Tatiana e obrigada Maria de Fátima!
engatado
Fátima:
in HOUAISS: "engastalhar" (*ver definição 2)
verbo
1 ( t.d. ) prensar (madeira) com gastalho (carp)
2 ( t.d. e pron. ) fazer que se prenda ou prender-se em; embaraçar(-se), travar(-se)
‹ viu a menina e. os cabelos nos galhos da árvore › ‹ engastalhou-se na catraca do ônibus ›
3 ( int. ) DOU copular (o cão); enganchar
Bjks!
Espetacularmente bem construído, esse conto prende o leitor do início ao fim. Impressionante sua capacidade de criar personagens interessantes e instigantes. Sua cabeça é um caldeirão de ideias fantásticas. Adorei, adorei!!! Parabéns, Cinthia!
Sensacional!!! Embora você e sua arte mereçam, não vou ficar aqui rasgando mais sedas, para não ser repetitivo, cansativo; mas ter acesso a uma peça literária assim é um enorme privilégio. Meus parabéns!!!
Meu vocabulário não é tão abrangente pra descrever bem seu texto. Brilhante, é o q posso dizer!
Obrigada, Marco Aurélio! :)
Anônimo, seu vocabulário foi o suficiente para me deixar feliz! Obrigada!
Cínthia, sua danada!... Fiquei com tanto dó da moça: saber tragédia e não poder evitar causa misto de sensação de impotência, tristeza com o fato e consigo mesmo e incompreensão da vida, né? Grata por esse texto intenso e claro, que nem Madri.
Muito bonito. Um policial resolvido por métodos sobrenaturais. Parece-me um tratamento pouco comum nos seus contos, mas correu bem. :)
Obrigada por ter lido e comentado, Gina!
Obrigada, ajoaquimJoaquim, de vez em quando faço um passeio pelo místico, pelo realismo fantástico. Para experimentar mesmo.
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