(conto juvenil)
Ana Beatriz Manier
Cinco
fileiras de mesas preenchem a sala. Uma perto da porta, três de frente para o quadro e outra junto da
janela. Elas são de fórmica e nos dias frios como hoje gelam nossos braços. As
cadeiras fazem jogo com elas e são duras, frias também, talvez para a gente não
ficar confortável demais e correr o risco de dormir.
Em
cada fileira há 10 lugares. Eu sou a quarta da fila do meio, estou quase no
umbigo da sala, e tenho uma visão muito
boa do que acontece em toda parte.
Pelos
vidros da porta, vejo o movimento do corredor. Os alunos que inventam sede e
vontade de ir ao banheiro só para fugir do olhar eu-sei-o-que-você-está-pensando de alguns professores e da voz
metálica ou arrastada de outros. Ser estudante não é nada fácil.
Minha
visão do quadro é excelente também. Eu nunca preciso ficar me espichando para
enxergar uma palavra num canto ou noutro, e as cabeças que ficam na minha frente não
chegam a atrapalhar, às vezes eu até me distraio reparando quem está com o
cabelo oleoso, quem tem alergia na nuca ou está com a gola suja.
E
de onde estou também pego em cheio a janela. A janela... ali sim mora a minha
grande distração. Que poderia ser o azul forte do céu, cheio de promessas para a
tarde, ou as nuvens gordas que se arrastam preguiçosas, ou ainda o ninho de andorinhas
que está sempre ocupado de bebês passarinhos debaixo do beiral do prédio ali pertinho. Mas não é nada disso. Me distraio
com uma cabeça em movimento constante. Com os cabelos louros e finos que ganham
um brilho especial quando bate o sol. Com a mão que levanta toda hora para
fazer algum comentário.
Uma
pergunta é jogada para a sala durante a aula de ciências e a mão sobe mais uma
vez. A mão dele.
−
Os fungos não podem efetuar a fotossíntese porque não têm clorofila, como as
outras plantas – responde ele com naturalidade.
Eu
fico encantada com as coisas que ele fala, como pode ser tão inteligente? E
sempre que posso completo com alguma coisa também:
−
É... e por isso eles não produzem o próprio alimento! – arrisco.
−
Muito bem, João. Alice. É exatamente
isso – elogia a professora.
E
nossos nomes, juntos assim, me deixam assustada. Fico vermelha. Que droga.
Algumas
meninas começam a jogar piadinha. “Alice & João, uh-huh!”, “Nhê nhê nhê...”. Fico mais vermelha ainda. Que raiva. Nada a
ver. O garoto só é inteligente. E até parece que eu vou dar bola para um baixinho
que bate no meu ombro. Tampinha. Pintor de rodapé.
Fico
quieta, não respondo nada, faço cara de quem não tolera criancice e está a fim
de prestar atenção na aula.
Logo
a aula de ciências acaba e troca o professor. Geografia. João vira para o lado
e fica conversando com as meninas. Ele tem olhos grandes e ágeis, apoia os cotovelos
no parapeito da janela, os pelinhos do braço ficam dourados pelo sol, fala
alguma bobeira com as meninas e elas riem. Fico com a maior vontade de saber do
quê.
A
aula de geografia corre normalmente. Regiões e sub-regiões do Brasil. João é
gaúcho, me contou algumas coisas engraçadas de lá do sul. Umas falas diferentes:
sinaleira, pechada, tchê... tem gente que ri do sotaque dele, acha estranho. Eu
acho bonito. Bem que um dia eu podia ser a prenda dele.
O
sinal vai tocar e todo mundo começa a ficar alvoroçado. Recreio. Estamos com
fome. Quando dá a hora, é a maior barulheira de mesas arrastando. Espero minhas
amigas e vou saindo com elas. João vem com a gente. Logo está do meu lado. Não
gosto muito de andar do lado dele, ele é mesmo pequeno, será que tem problema
de crescimento? Juntos, ficamos parecendo uma palmeira e um coqueiro anão. Tento desconversar quando
ele puxa assunto e invento uma desculpa para ir na frente, digo que vou guardar
nosso lugar à mesa da cantina ou qualquer outra coisa.
Ele
percebe meu comportamento esquisito, mas não fala nada. À mesa, é diferente. Os
vinte minutos voam. A gente conversa e ri,
bebe do canudinho um do outro e sempre dá um jeito de encostar os braços.
Não há nenhum projeto de lei que mande esticar o horário do recreio?
Na
hora de voltar para a sala, tendo enrolar de novo. Ele ameaça me esperar, mas
eu baixo o rosto, fingindo que procuro alguma coisa no bolso da calça jeans. As
meninas da outra mesa se misturam com a gente e começam a falar com ele, que
logo as faz rir de novo.
Eles
saem juntos de volta para a sala. Eu sigo atrás com duas amigas.
As
meninas adoram o João. Além de inteligente, ele é simpático, o que o torna mais bonito do que é. Ele
abraça uma delas, que retribui e não se sente incomodada por ele ser pequeno.
Ele vira para trás, olha pra mim, um sorriso de quem quer dizer alguma coisa,
alguma coisa que me machuque.
E
quem se sente pequena sou eu. Encolhida. Ínfima. Mais uma vez finjo buscar
alguma coisa no bolso da calça. Um lugar para eu me enfiar, talvez.
Entramos todos na sala. Ele e as meninas estão
envolvidos por uma aura de alegria e diversão. O sol logo se une ao calor daquele
momento.
Eu
sento na minha cadeira dura, quase no umbigo da sala. Ali não bate sol, nem
sopra vento. Ninguém parece prestar atenção em mim e a fórmica da mesa me gela
os braços impiedosamente.
1 comentários:
Uma graça de conto! A cara dos jovens! Você tem o dom!
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