OS INTRUSOS
1
Num sobressalto inesperado todos berraram
de um grito assustado e assustador como que preso dentro da alma, um grito como
o piar da mais enigmática coruja a sobrevoar o céu de São José, nas noites
calmas de domingo... Em seus rostos o reflexo da mais completa estranheza. Um
deles chorou.
2
Tudo começou quando Sandro resolvera
como prenda de um jogo perdido de dominó mostrar a bagunça de sua casa aos
amigos. O pai dele vivia dizendo que não queria saber dessa história de levar
os amigos à casa deles – não tolerava muito a ideia de ter de usar as máscaras sociais
também em sua casa, ou seja: “nada de amigos aqui, ouviu, Sandro?!”.
Sandro, então, viu-se inesperadamente
com o ônus de pagar a prenda de modo fácil e driblar essa frescura do pai.
Quando estava tomando café da manhã, certo dia, teve a exata ideia de como
faria aquilo com a mais completa
perfeição satisfazendo, ao contrário dos ignóbeis deuses olímpicos, a gregos e
troianos. Lançou mão de uma câmera pequena que sua irmã tinha em casa e
resolveu fazer uma filmagem. Os amigos veriam a casa bagunçada enquanto o
constrangido morador e pagador da pena do jogo mostraria, percorrendo, seus
aposentos e o pai não teria de colocar sua máscara risonha para receber os amigos
do filho.
A ideia pareceu-lhe boa. Sentiu alguma
satisfação por sua racionalidade e presteza.
Foi aí que desatou a filmar a casa.
Percorria cada aposento com a mais acurada paciência, narrando para os
eventuais expectadores do dia seguinte, provavelmente antes ou depois da aula
chata de cálculo 1, cada cômodo, descrevendo as feições e maus hábitos de quem
os habitava e seguindo vagarosamente, logo após, para o cômodo seguinte.
Sala de estar. Sala de visita.
Corredor. Sala de jantar. Cozinha. Área de serviço. Quartos. Tudo foi filmado.
Ao término de tudo Sandro já estava até mesmo cansado. Trabalho feito. No outro
dia levaria o vídeo para os colegas se deliciarem com o pagamento de seu mico.
Tudo pela turma!
3
Estavam atônitos. Alguém, não se sabe
quem deles ao certo, pediu para que voltassem a filmagem. Precisava ter
certeza. E foi. O Josué que era o menor do grupo, chamado café com leite, na linguagem de moleque que designava menino com
idade pouca, foi que deu o berro mais agudo, seguido de um choro que não parava
de jeito nenhum.
Tudo aquilo era estranho demais. Mas o
choro de Josué é que fazia o coração de todos bater ainda mais intensamente. O
choro de Josué era a prova de que o outro
sentia aquilo que cada um sentia individualmente, era a prova de que todos eles
estavam ali, de que aquilo não era um sonho e de que aquilo não era normal.
Josué chorava de se matar.
Estavam no pátio de trás do colégio, à
sombra de uma velha mangueira que esticava galhos e raízes para todos os lados.
O choro de Josué era levado pelo vento e ecoava pelos cantos, voltando num eco
para eles, como se fosse um bumerangue.
Havia um silêncio estranho no ar. Eles
tinham, sem saber, caído na toca do coelho e tudo lhes parecia tão estranho
quanto estranhas eram as criaturas com quem Alice falava. Até o vento parecia
de repente sussurrar coisas absurdas nos ouvidos de todos... Até o vento...
Sandro estava estatelado. A reação dele
era a pior de todas. Todos berraram, todos gritaram, Josué ainda chorava
tamanha tinha sido sua impressão, porém Sandro tinha reagido lentamente à
coisa, como quem custa pra acreditar e demora pra se convencer. Mas ali,
naquele exato momento em que até Josué encerrara o choro, todos olhavam para Sandro
a espera de sua reação e ela vinha como se de dentro da mais profunda caverna
de seu atribulado ser.
A torre rosada do Colégio Nóbrega fazia
sinal de cruz e Sandro, observando-a, via que a cruz de nada adiantava numa
hora daquelas e que até o azul intenso do céu do bairro da Soledade era
tenebroso naquele momento.
Trocaram entre si olhares de
cumplicidade. Todos haviam visto.
– Todos viram? Perguntou gaguejando o
Bernardo, como se pra ter certeza.
O silêncio foi a resposta de
deferência. Sim, todos haviam visto.
Ficaram ali por horas e horas perdidas.
Sequer haviam voltado do intervalo de quinze minutos para o qual haviam saído.
A aula de cálculo 1 recomeçava. Mas eles nem notavam o fato de suas ausências,
nem mesmo o fato de estarem ali, sob a sombra da velha mangueira e sob a vista
da torre alta do colégio jesuíta. Sentiam-se como mortos. Estavam mortos.
Estavam? E ela..., estava? E aquele...
4
Sandro filmava quando a estranha
situação lhe ocorreu. Ele não se deu conta. A gente quase nunca se dá. Abriu a
porta de seu quarto para filmar e sentiu os poros se dilatarem e seus pelos se
arrepiarem estranhamente.
Entrou e mostrou com maior rigor de detalhe
cada ponto daquele cômodo já que era seu quarto e ele podia falar com maior
propriedade dado o seu conhecimento e intimidade. Passou a câmera por todos os
lados e depois saiu.
Num canto do quarto esgueirava-se uma
menina estranha. Trajava à vista de quem observava da câmera uma espécie de
vestido branco rasgado e desbotado que tinha algum brilho como uma aura em seu
redor. Seus cabelos eram negros como a mais alta noite de lua nova e caíam
sobre seus olhos de modo a lhe tapar as feições do rosto sombrio.
Assim que a porta fora aberta ela saltou
do canto do quarto onde estava para cima da cama. E ali, agachada, permaneceu
com o rosto baixo, enquanto Sandro, olvidando tudo aquilo continuava sua
incursão vídeo-registrada.
Todos achavam naquele momento da
filmagem que o Sandro apresentaria sua irmã. Todos esperavam que ele de repente
falasse algo como: “e nesse canto do quarto, em cima da cama, a louca da minha
irmã que não me deixa em paz e não sai do meu quarto!”. Mas Sandro passou pela
menina mil vezes e nem olhou sequer para ela. Sentou-se na cama, mirou a câmera
para si para falar mais pausadamente e nessa hora todos aqueles que estavam
assistindo o vídeo viram o rosto por detrás dele...
Enquanto tudo isso se revelava no
vídeo, Sandro passava mal silenciosamente, daquele seu jeito horrível de
sentir-se doente – dizem que quase não chorava quando era bebê, sua mãe sabia
que estava mal quando ele ardia em febre. Lembrava-se de toda aquela sensação
estranha que tinha tido, todo aquele arrepio dos pelos e dilatar dos poros,
aquele suor frio e a falta de ar repentina... Absurdo como não tinha visto
nada, como não tinha se dado conta.
Quando se ergueu da cama e rumou à
porta no intuito de sair do quarto foi aí que houve, no dia seguinte, no
momento em que todos assistiam o vídeo, o grito. Um homem esguio e com feições
demoníacas apareceu repentinamente de um canto qualquer do quarto. Estava
vestido aos trapos. Tinha os cabelos acinzentados e os olhos esbugalhados. A
mandíbula era quase toda corroída, como se já não mais fosse desse mundo há
muito. Com a mão em riste deu silenciosa ordem à menina fantasma que dum salto
ergueu-se da cama e seguiu Sandro até a porta.
Ele puxou a maçaneta e fechou a porta
do quarto. Quem assistiu a filmagem o viu puxando a porta e a menina com olhos
amarelos de ave de rapina e cabelos sobre o rosto girando a maçaneta e
trancando a porta por dentro.
O quarto estava selado. Ninguém nunca
mais dormiu ali.
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