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sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

O VIVO-MORTO

Foto: revolver, de duncan c - https://www.flickr.com/photos/duncan/25525436


Desvia os olhos do relógio de pulso e constata a chegada do carro-forte. Ajeita a maleta, verificando a firmeza da alça – antes de sair de casa, precisou colá-la.

Caminha pelo hall de entrada do banco ao mesmo tempo que os policiais, com as armas em punho, passam apressadamente por uma porta lateral carregando os malotes.

O vigia o fita. A porta giratória, à primeira tentativa, trava. Volta até a linha amarela. Olha para o vigia, mas este, agora, não lhe dá atenção, preocupado com o fechamento da porta lateral. Faz nova tentativa na porta giratória; entra, sem precisar desembolsar o que carrega.

Os ombros descontraem – falta pouco. Observa as mesas alinhadas lado a lado, à procura da gerente. Encontra-a, atendendo uma senhora. Senta-se, à espera. Constata a saída dos policiais pela porta lateral até a partida do carro-forte. Fecha os olhos, aliviado, e nem percebe que a gerente, finalizado o atendimento anterior, o chama.

Pede desculpas, alegando cansaço, e põe a maleta sobre as coxas.

- Falamos ao telefone.
- Ah, sim... Pensou na minha proposta de capitalização?
- Não há interesse. Vou sacar tudo.

A gerente fecha a cara:

- Bom, preciso de um comprovante de residência.

Abre a maleta com dificuldade, retira a correspondência do plano de saúde e a coloca sobre a mesa.

- Não posso aceitar. Não é válida perante a lei.

Entrega uma conta de luz. A gerente acessa o sistema, digita sem parar, até fazer novo pedido:

- Preciso do seu R.G. e C.P.F.

Entrega os documentos junto à uma procuração. A gerente analisa o papel amarelado – firma reconhecida, data longeva, assinatura do procurado, nomes...

- Idênticos. Achava que era o senhor...
- Tradição paterna.

Nova digitação. Depois, um bom tempo com olhos fixos na tela. Ele a observa, e percebe que a gerente não está mais analisando os dados. Ela abaixa o olhar ao falar:

- Aguarde um instante, por favor.

Levanta-se, sem dar chance de resposta, levando a documentação consigo.

Ele a acompanha com os olhos. Percebe os murmúrios, os olhares esquivos para si, mas tenta disfarçar indiferença. O telefone celular toca, assustando-o. Os olhares, agora, são diretos. O som de chamada, incessante. A vibração do aparelho celular disfarça o tremor nas mãos.

- Disse pra não me ligar de jeito nenhum... Que emergência? - emposta a voz, e logo percebe o ato falho. Diminui o tom: - … Não acredito no que estou ouvindo...

Sem notar, a gerente se aproxima e torna a sentar-se à sua frente; alguns metros atrás, o vigia, mão no coldre, olhar impassível.

- Você só tem que mantê-lo amarrado. Me escutou?... Você sabe o que eu estou resolvendo, e isso é pro futu...

A gerente lhe sorri amarelo. Ele abaixa o celular.

- Infelizmente o sistema caiu, mas deve retornar em breve. O senhor não gostaria de esperar numa sala do 2º andar?

Ele segura a mão da gerente:

- Não faça isso comigo.

O vigia encosta o cano do revólver na cabeça do homem, e o engatilha.

- A pasta, devagar, no chão. – fala o vigia, com firmeza.

O homem observa o seu entorno. As pessoas, assustadas, param as conversas nas filas. Os funcionários diminuem seu ritmo frenético, até estancarem. Em poucos segundos, o tempo parece estar em suspensão.

- Isso é realmente necessário?... – pergunta o homem, e sente maior pressão do cano do revólver em sua nuca – Vou colocar a maleta no chão. Só digo uma coisa: vocês vão se arrepender por isso.

Fecha a maleta, que estava entreaberta, e a pega pela alça. Lentamente a coloca para o lado e desce-a...

A maleta se desprende da alça, batendo no chão com estrondo. Gritos. Outro estrondo, mais forte, é ouvido em seguida... depois, silêncio absoluto.

Na mão do policial, a arma, fumegante, ainda apontada, agora sem alvo.

À sua frente, um corpo projetado sobre a mesa ensanguentada. Na parede, um quadro surrealista em tons de vermelho.

No chão, do outro lado, caída da cadeira, a gerente, borrada de sangue, olhos atônitos, murmura palavras desconexas...

A maleta, aberta após a queda, deixa espalhado pelo chão algumas dezenas de exames clínicos, laudos, chapas e tomografias, todas em nome do pai do homem que as carregava; todas apontando um estado de saúde irreversível.

Do outro lado da linha do celular, a esposa grita, desesperada, implorando que ele responda. À sua frente, na mesa, contas em atraso, esperando pelo saque da poupança. No cômodo ao lado, o pai do homem veste-se com todas as roupas que encontra e lhe cabem, pronto para realizar seus afazeres imaginários.

Na tela do computador, no banco, a pesquisa por C.P.F. aponta que o senhor citado acima é dado como morto pelo I.N.S.S..

Nesse mesmo instante, em outra agência desse mesmo banco, a esposa que saiu de casa quando o senhor começou a apresentar os primeiros sinais da doença, está na boca do caixa, sacando a pensão por morte fraudada anos atrás.



Conto integrante da minha coletânea de contos e poesias FORJANDO MUNDOS, publicada de forma independente e disponível para download gratuito no link:
http://www.recantodasletras.com.br/e-livros/5047189

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2 comentários:

Bem-vindo à SAM! Um intrigante e bem elaborado conto de estreia. E assim caminha este país, não? Cheio de fraudes. Nem todas terminam mal. Gostei muito da trama.

Muito obrigado pelas boas vindas, Cinthia, e fico feliz que tenha gostado do conto!!! Nessa estórias, quis mostrar não só o que parece ser o mal maior do Brasil hoje (e de sempre, acredito), mas também como os pré-julgamentos afetam a vida do cidadão comum. De um jeito um pouco mais violento, mas nem por isso menos realista.

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