Seu Leal era funcionário público, atividade que
exercia com pompa, mas sem qualquer entusiasmo. A única coisa de que gostava –
e isso, sim, lhe conferia importância – era o carimbo que depositava em alguns
documentos oficiais. Como num ritual, pressionava a almofada de um lado, do
outro, e pronto! Carimbava, com solene agressividade, os papéis, de resto já
rendidos ao seu crivo. Entretanto, até esse prazer lhe fora tirado, com o
advento do carimbo automático.
Paralela à sua atividade funcional, havia a paixão
por jogos de azar. Apenas dos cavalos escapara, para alívio da esposa. Já as
loterias, essas, eram visitadas quase que diariamente. Nada escapava de sua fezinha: Mega Sena, Loto, Loto Mania,
raspadinhas de todos os tipos. Sua especialidade, contudo, era mesmo o Jogo do
Bicho: conhecia todos os animais, em ordem, com as respectivas dezenas e
grupos, além do simbolismo contido em cada um.
O desencanto com o trabalho era inversamente
proporcional ao seu empenho como representante de sua seção junto aos bicheiros
locais. Cedinho, perambulava pelas salas do setor, orientando quem eventualmente
tivesse algum palpite.
– Sonhou
com a sogra? Joga na cobra! 33 na cabeça, tenho certeza!
– Ih, o
seu João veio todo embecado hoje. Vai dar pavão.
Quando a pessoa não entendia bem os trâmites do
processo, ele explicava, pacientemente:
– Se o sonho foi com bicho e não com um
número, joga no grupo. Para garantir, cerca pelos sete lados. Aí, você ganha
mesmo se não der na cabeça. O carro estava de ré? Joga o número da placa
invertido.
Outro ponto que ele fazia questão de frisar: o
palpite só valia para o dono. E nisso ele era de uma ética ímpar. Jamais
utilizava um palpite que não fosse seu.
Com o passar do tempo e com a automação das
funções, seu Leal foi ficando mais e mais obsoleto. Sentia-se uma máquina de
escrever em meio a computadores de última geração. Apenas uma coisa ninguém lhe
tirava: o know-how do Bicho.
Passou a jogar pra valer. Duas vezes por dia.
Buscava pistas e sinais nas situações mais corriqueiras, como o número da
comanda do restaurante ou o preço do cafezinho. Precisava ganhar um prêmio
milionário. Não aguentava mais o trabalho.
O chefe limitava-se a tolerá-lo. Afinal, era um
senhor, o servidor mais antigo do setor. Era só uma questão de tempo até ele se
aposentar.
Leal conferia mais uma vez o jogo. Nada. Ainda não
fora dessa vez. A mulher via o companheiro definhar de tristeza.
– Eu vou ganhar. Essa foi por pouco...
– Desiste disso, homem! Você tem um emprego
seguro, onde ninguém te aporrinha. Se você somar tudo o que já gastou em
jogo...
– Quem não joga não ganha! E eu vou ganhar!
Os dias se passavam, e Leal auxiliou vários
colegas, vendo-os ganharem prêmios. Ele mesmo conseguiu faturar um dinheirinho
em alguns bolões, mas nada que lhe permitisse jogar tudo para o alto.
Faltavam mais ou menos seis meses para a
aposentadoria quando ele morreu. Um mal súbito. Coroas de flores eram enviadas
pelos colegas. A viúva, inconsolável, voltava para casa quando viu um dos
bicheiros, aos gritos, entrando no cemitério com o número da sepultura num
pedaço de papel amassado. Dera na cabeça.
4 comentários:
O conto não é sobre a irracionalidade do jogo, mas é um saboroso fresco social contendo uma pitoresca personagem igual em obsessão a tantas outras. A irracionalidade que se pode extrair é a de que há quem pretenda adivinhar o futuro, aquilo que ainda não existe nem pode ser inferido.
Obrigada pela leitura e pelos comentários, Joaquim!
Muito bom, Tatiana! Texto rápido, leitura deliciosa e super interessante. Parabéns!!
Obrigada pelas palavras, Cris!
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