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sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

NA CABEÇA



 


Seu Leal era funcionário público, atividade que exercia com pompa, mas sem qualquer entusiasmo. A única coisa de que gostava – e isso, sim, lhe conferia importância – era o carimbo que depositava em alguns documentos oficiais. Como num ritual, pressionava a almofada de um lado, do outro, e pronto! Carimbava, com solene agressividade, os papéis, de resto já rendidos ao seu crivo. Entretanto, até esse prazer lhe fora tirado, com o advento do carimbo automático.
Paralela à sua atividade funcional, havia a paixão por jogos de azar. Apenas dos cavalos escapara, para alívio da esposa. Já as loterias, essas, eram visitadas quase que diariamente. Nada escapava de sua fezinha: Mega Sena, Loto, Loto Mania, raspadinhas de todos os tipos. Sua especialidade, contudo, era mesmo o Jogo do Bicho: conhecia todos os animais, em ordem, com as respectivas dezenas e grupos, além do simbolismo contido em cada um.
O desencanto com o trabalho era inversamente proporcional ao seu empenho como representante de sua seção junto aos bicheiros locais. Cedinho, perambulava pelas salas do setor, orientando quem eventualmente tivesse algum palpite.
– Sonhou com a sogra? Joga na cobra! 33 na cabeça, tenho certeza!
– Ih, o seu João veio todo embecado hoje. Vai dar pavão.
Quando a pessoa não entendia bem os trâmites do processo, ele explicava, pacientemente:
 – Se o sonho foi com bicho e não com um número, joga no grupo. Para garantir, cerca pelos sete lados. Aí, você ganha mesmo se não der na cabeça. O carro estava de ré? Joga o número da placa invertido.
Outro ponto que ele fazia questão de frisar: o palpite só valia para o dono. E nisso ele era de uma ética ímpar. Jamais utilizava um palpite que não fosse seu.
Com o passar do tempo e com a automação das funções, seu Leal foi ficando mais e mais obsoleto. Sentia-se uma máquina de escrever em meio a computadores de última geração. Apenas uma coisa ninguém lhe tirava: o know-how do Bicho.
Passou a jogar pra valer. Duas vezes por dia. Buscava pistas e sinais nas situações mais corriqueiras, como o número da comanda do restaurante ou o preço do cafezinho. Precisava ganhar um prêmio milionário. Não aguentava mais o trabalho.
O chefe limitava-se a tolerá-lo. Afinal, era um senhor, o servidor mais antigo do setor. Era só uma questão de tempo até ele se aposentar.
Leal conferia mais uma vez o jogo. Nada. Ainda não fora dessa vez. A mulher via o companheiro definhar de tristeza.
 – Eu vou ganhar. Essa foi por pouco...
 – Desiste disso, homem! Você tem um emprego seguro, onde ninguém te aporrinha. Se você somar tudo o que já gastou em jogo...
 – Quem não joga não ganha! E eu vou ganhar!
Os dias se passavam, e Leal auxiliou vários colegas, vendo-os ganharem prêmios. Ele mesmo conseguiu faturar um dinheirinho em alguns bolões, mas nada que lhe permitisse jogar tudo para o alto.
Faltavam mais ou menos seis meses para a aposentadoria quando ele morreu. Um mal súbito. Coroas de flores eram enviadas pelos colegas. A viúva, inconsolável, voltava para casa quando viu um dos bicheiros, aos gritos, entrando no cemitério com o número da sepultura num pedaço de papel amassado. Dera na cabeça.

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Tatiana Alves
Tatiana Alves é poeta, contista e ensaísta. Participou de diversos concursos literários, tendo obtido vários prêmios. É colaboradora da Revista Samizdat, já tendo escrito para os sites Anjos de Prata, Cronópios, Germina Literatura e Escritoras Suicidas. É filiada à APPERJ, à Academia Cachoeirense de Letras e à AEILIJ. Possui nove livros publicados. É Doutora em Letras e leciona Língua Portuguesa e Literatura no CEFET / RJ.

todo dia 02


4 comentários:

O conto não é sobre a irracionalidade do jogo, mas é um saboroso fresco social contendo uma pitoresca personagem igual em obsessão a tantas outras. A irracionalidade que se pode extrair é a de que há quem pretenda adivinhar o futuro, aquilo que ainda não existe nem pode ser inferido.

Obrigada pela leitura e pelos comentários, Joaquim!

Muito bom, Tatiana! Texto rápido, leitura deliciosa e super interessante. Parabéns!!

Obrigada pelas palavras, Cris!

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