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quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Faits divers, número um





Tudo mudou quando entendi que ele era eu. Eu, talvez, não eu. Minha imagem e semelhança, não é o que dizem? Ele era eu, passou a ser eu, ele passou a ser eu

No princípio, de nada me servia. Ele chegava, ou melhor, ele estava lá, ele passava a estar lá depois de certa hora da noite, depois que eu chegava em casa, depois que ligava o computador. A primeira vez aconteceu quando eu estava no banho. Lavando a cabeça, eu acho, não, estava lavando a cabeça com certeza. Eu estava deixando o cabelo crescer na época. Vi através da porta do box. Ele estava no vaso, nu. Encarou-me de volta, foi quando vi os olhos dele, que não eram os dele, eram os meus olhos. Olhou-me do modo como quando se olha, se encara alguém sem uma pergunta ou uma afirmação, do modo como eu olho, como eu encaro as pessoas, cara de paisagem, como se diz. Percebeu-me olhando para ele, devolveu-me o olhar, e mais nada. Blasé, é essa a palavra. Blasé. Ele terminou. Tirou um pedaço grande de papel higiênico, do comprimento do braço, dobrou em dois, depois novamente, mais uma vez e outra, e se limpou, como eu me limpo. Reconheci o cheiro da minha merda. Não precisaria olhar para saber que era a minha merda, não idêntica. Era a minha merda. Ele terminou, vestiu as calças, lavou as mãos, esfregando o sabonete nas mãos embaixo da torneira, num movimento circular, meio descuidado, o modo como eu lavo as mãos. Olhou-me uma última vez e saiu. Terminei o banho.

 Na noite seguinte, deixei as chaves na mesinha ao lado da porta. Estava morto de fome, acho que só tinha comido ao meio dia, um sanduíche de frango, meio velho, no bar do meio. Nós gostávamos mais do café do japa, mas subiu para um real, “não tá valendo isso tudo”, disse uma das gurias. Eu não me importava muito, café é café. Uma delas disse que o café de lá era queimado, e eu nunca entendi como o café pode queimar, “se o café já é preto”, eu perguntei, “como é que eu vou saber se ele tá queimado ou não?”, e uma delas disse que só provando. “Café queimado tem gosto de velho”. Eu acho que sempre tomei café queimado e nunca percebi, ou nunca me importei. “Não sei que gosto tem velho. Nunca provei um velho”. Só uma delas riu. Tomei o café do bar do meio e não notei diferença. Talvez estivesse queimado também. Comi um sanduíche de frango, que uma das gurias pediu um pedaço e reclamou que estava velho. Eu mandei à merda, “tu reclama de tudo!”. Ela concordou. Cheguei em casa à noite, deixei as chaves na mesinha. Ele estava na cozinha, a geladeira com a porta escancarada. Ele comeu o resto do pão com torresmo, e tomou minha cerveja. Ele era eu, na verdade. A cerveja era minha, não era? Então, eu tomei a cerveja, e comi o pão com torresmo. Não era eu, era ele, mas era eu. Fiquei assistindo ele terminar de beber, catando os farelos no prato. Riscava com o dedo a água acumulada no vidro do copo, nunca entendi bem por que isso acontece com um copo gelado, a coisa da transferência de temperatura, mas gostava de fazer desenhos naquela água que se desfaziam assim que os terminava. A cerveja não era grande coisa, foi o que deu pra comprar no fim do mês.


***

Outro dia eu acordei com uma canção do Roberto Carlos na cabeça. Acordar com o cérebro sintonizado numa rádio AM não tem qualquer explicação. Acontece muito comigo. Esse dia, era o Roberto. Meu bem, meu bem. Use a inteligência uma vez só. Quantos idiotas vivem só. Gosto mais na voz da Gal, naquele programa Ensaio, não lembro bem em que ano, setenta, eu acho. Pensei que essa conjugação tava errada. Não seria "quantos idiotas vivem sós"? Então eu começou a cantarolar a mesma música na cozinha, antes que eu me levantasse. Ouvi eu preparando o café. Senti o cheiro do café passando. Ainda tinha café. Esqueci que ainda tinha, mas eu deve ter lembrado. Eu ri pensando numa coisa, em outra canção do Roberto. Amanhã de manhã vou pedir um café pra nós dois. Ri muito. Fui até a cozinha. Eu não estava lá. Tomei café sozinho.

***

Quando éramos crianças, a gente percebia que, cada vez que coisas novas vinham pra casa, as coisas velhas começavam ou a parar de funcionar, ou a sumir. Não era superstição. Ou era. Eu não sei dizer. Eu sei que, quando quebrava uma taça, ou quando eu procurava o outro pé da meia na gaveta, era certo que era de birra das coisas porque havia uma roupa, um eletrodoméstico, um disco novo - quando ainda comprávamos discos. 

Foi engraçado quando eu comecei a namorar. Contei pra ela essa história. Ela perguntou se alguma coisa tinha estragado desde que ela passou a ir lá em casa. Eu disse que ainda não, mas um dia ela ia partir o meu coração. Ela riu muito, disse que isso ia ficar bem num para-choque de caminhão - quando ainda escreviam frasezinhas cretinas nos para-choques de caminhão. Ela partiu meu coração mesmo assim.

Por isso que eu fiquei assustado quando eu apareceu aqui. Eu, esse outro eu, que varre a casa do mesmo jeito que eu varro. Tenho que admitir que a casa fica muito mais limpa se eu limpa do que quando eu limpo. Os vidros, cara. Eu nunca tinha visto os vidros transparentes. Meu medo de sair na rua durou uns três dias. Me imaginei envelhecendo, ficando deformado, enquanto eu continuava vivendo a minha vida, nos detalhes mais idiotas, como pegar mosquitos no ar, do jeito que eu faço.

Até que uma das gurias veio aqui, pra saber se eu tava mal, e ficou puta, "tu me mata de preocupação, não atende, não entra no face, e eu chego aqui, e tu fez faxina, e eu achando que tu tinha te matado, ou morrido no chuveiro que nem a minha tia" e eu perguntei "tá decepcionada porque eu não morri?" e ela "não, porra, só me preocupei mesmo". Então a gente saiu pra beber na casa de alguém que eu não conhecia.

***

Eu sentou-se no meu lugar na cama, com um pote de sorvete. Estava descalço e estava usando a minha camisa do Iron. Eu me observava, ou melhor eu o observava, assistia eu comendo. Peidou e arrotou umas duas vezes. Sem se levantar, esticou o braço até a estante e pegou o livro que eu tinha que ter devolvido semana passada, e já devia estar custando mais em multa do que se tivesse comprado novo. Acompanhei a leitura. Abriu onde estava o marcador. Na cena em que o fazendeiro pendura o menino pelos braços no alto do galpão e deixa o cachorro brabo solto esperando a hora que o menino caísse, eu riu muito.

Fiquei aterrorizado com um pensamento que me ocorreu. No meu quarto, só no meu quarto, para qualquer item dentro dele, havia algum tipo de regra que me proibia de fazer alguma coisa relacionada àquele objeto, e que, de uma forma ou de outra, eu seria punido se fizesse aquilo que a regra diz pra não fazer. Olhei tudo em casa. Pra minha história. Pra minha vida. Pro histórico do meu navegador da internet. Deus. Quase tudo à minha volta pode ser usado como uma prova contra mim.

Eu pingou sorvete no chão, na cama e na minha camiseta do Iron. "Porra, che!"

***

Sentei no ônibus atrás de um sujeito que tinha uma mosca colada atrás da cabeça. Um inseto, na verdade, mas era do tamanho de uma mosca varejeira. Não tive coragem de tirá-la de onde estava. Fiquei intimidado com a aparência do cara: cabelo raspado, óculos escuros esportivos cobrindo até as sobrancelhas, caninos inferiores proeminentes. Acho que eram os únicos dentes dele. Mastigava a língua, como fazia minha bisavó. Era um personagem de Mad Max usando óculos de um personagem de Matrix. Ele levantou, deu o sinal ao motorista, desceu na parada seguinte. Não bateu nem atirou em ninguém, nem caminhou pela parede, nem entrou num carro feito de tubos enferrujados. Pensei no quanto a vida é sem graça.

Cheguei no condomínio. Eu estava no elevador quando eu entrei. Me olhou como se fosse dizer algo. Ignorei. Quando chegamos no andar, deixei eu ir na frente. Estava com um inseto do tamanho de uma mosca varejeira colado na parte posterior da cabeça. Nem hesitei. Dei-lhe um tapão na nuca fazendo-o cair e bater a cara na parede do corredor. Antes que a porta do elevador fechasse, agarrei-o pela jaqueta, arremessei-o com toda a força para dentro. O inseto estava meio zonzo no chão. Pisei nele ouvindo um estalinho extremamente satisfatório.

Entrei em casa, larguei minhas coisas na sala. Fui tomar um banho e tocar uma punheta gratificante.

***


Quando o casal Fode-fode se mudou para o apartamento de cima, a doce paz que imperava nas madrugadas do meu edifício, a única coisa que ainda me prendia àquele lugar, se foi por tempo indeterminado. Asseguro, o tempo era realmente indeterminado. O casal Fode-fode não tinha nenhuma regularidade, nem para começar as atividades, nem a duração de cada sessão. A minha teoria é que eles trabalhavam para algum site desses de putaria, onde os punheteiros sérios se cadastram para assistir amateurs transando, escolhendo entre couples ou singles. Punheteiros não sérios ou casos mais doentios não são do meu escopo, então, me permito nem falar a respeito. A internet facilitou a vida de tarados de todo o tipo, e o bom senso e a fé na espécie são o limite daquilo que se pode encontrar com meia dúzia de cliques. Não que eu entenda muito disso. Confesso que fico curioso, mas sou das antigas: eu gosto de filme pornô, com atrizes e atores de quem eu lembro o nome (um salve aí para a Sylvia Saint e o Rocco Sifredi!). 
 
Mas o casal Fode-fode, meus vizinhos, transavam em cima de mim, pelo menos, duas vezes toda madrugada. Depois de perder completamente a atenção dedicada ao meu trabalho, ou à leitura, precisava parar e ir fazer outra coisa. Qualquer coisa, por, pelo menos quinze minutos, ou meia hora, ou uma hora a cada trepada. Depois de umas três semanas nesse ritmo, comecei a entender mais ou menos a lógica das trepadas. Quando era o cara que ficava por cima, as bombadas eram enérgicas, frenéticas e as molas da cama batiam com força, quase até o assoalho, e eram breves sessões de dez ou doze bombadas, com uma breve pausa, até começar de novo. Geralmente a primeira transa da noite era assim. O outro padrão, que eu entendia como quando a guria estava por cima, as sessões eram de vinte a vinte e cinco bombadas mais longas e dinâmicas, rápidas, mas com um ritmo menos objetivo que as dele. Tinha também aquelas em que o box da cama batia contra a parede e o soalho simultaneamente, e essas sequências eram tipo 6+6+6+6+15. Essas duas variantes eram mais comuns nas transas do meio da madrugada, com alguma alteração nas transas do início da manhã – horário que oscilava entre cinco e meia e sete horas. Aos sábados, quando eu ficava em casa praticamente o dia todo, meus intervalos de sono eram de, no máximo, três horas, intercalados por um surto intermitente de trabalho árduo dos meus vizinhos. Eu pensava que era impossível que alguém tivesse tanta disposição para o sexo sem nenhuma compensação, só como prática desportiva. E como isso estava passando de dois meses, realmente confirmava a minha tese de que só a sensação de novidade entre os parceiros não seria uma justificativa. 
 
Então, numa madrugada em que os vizinhos estavam especialmente inspirados e bem dispostos (pelo ritmo, fiquei na dúvida sobre quem estava por cima, ou por trás, ou... enfim...) eu levantou-se da cama resoluto. Tomou um banho, fez a barba, penteou-se, vestiu-se dosando entre o desleixo e o esmero e saiu. Fui atrás. Eu tomou as escadas, percorreu o corredor, parou em frente à porta do Casal Fode-fode. Eu, aflito, mas curiosíssimo, acompanhei escondido na curva da escadaria. Eu tocou a campainha, uma vez. Uns minutos depois, alguém abriu uma frestinha da porta. Eu estava calmo. Gesticulou, apontando em direção ao chão, e encolhendo os ombros, fazendo um gesto de “bah!”, com ambas as mãos, como quem deixa escapar um balão. Mais meio minuto, e a porta se abre totalmente. 
 
Não sei o que aconteceu lá, sinceramente. Durante as semanas que passaram, eu aparecia de manhã pela porta da frente. Eu evitava olhá-lo, para não deixá-lo constrangido. Ele também não me olhava, mas sorríamos, meio cúmplices, cada um preparando seu café. Eu me arrumava para ir pra aula, e eu, depois de comer, ia para um banho demorado, de quase uma hora. Não sei o que fazia no resto do dia, se ficava dormindo ou ia visitar os novos amigos. Talvez eu até estivesse ganhando uma grana com eles; talvez tenham feito um cadastro de threesome ou mmf no site. Não sei mesmo. Eu nem acordo mais de madrugada. 

 





Publicado originalmente em F417s D1ver5 em novembro/dezembro de 2014




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2 comentários:

Penso que "isto" é muito bom. Acho que é muito bom. Há um aspeto a que já me vou acostumando com a sua escrita: a de uma grande honestidade. E depois tem a "novidade" não tão novidade na escrita sul-americana: o outro, o sósia, o outro eu. E o que isso abre de horizontes.
Continuam a aparecer pérolas nesta nossa Sam.

Puxa. muito obrigado, Joaquim. Não sei o que dizer.

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