Tudo mudou quando entendi que ele era eu. Eu, talvez, não eu. Minha imagem e semelhança, não é o que dizem? Ele era eu, passou a ser eu, ele passou a ser eu.
No princípio, de nada
me servia. Ele chegava, ou melhor, ele estava lá, ele passava a
estar lá depois de certa hora da noite, depois que eu chegava em
casa, depois que ligava o computador. A primeira vez aconteceu quando
eu estava no banho. Lavando a cabeça, eu acho, não, estava lavando
a cabeça com certeza. Eu estava deixando o cabelo crescer na época.
Vi através da porta do box. Ele estava no vaso, nu. Encarou-me de
volta, foi quando vi os olhos dele, que não eram os dele, eram os
meus olhos. Olhou-me do modo como quando se olha, se encara alguém
sem uma pergunta ou uma afirmação, do modo como eu olho, como eu
encaro as pessoas, cara de paisagem, como se diz. Percebeu-me olhando
para ele, devolveu-me o olhar, e mais nada. Blasé,
é essa a palavra. Blasé.
Ele terminou. Tirou um pedaço grande de papel higiênico, do
comprimento do braço, dobrou em dois, depois novamente, mais uma vez
e outra, e se limpou, como eu me limpo. Reconheci o cheiro da minha
merda. Não precisaria olhar para saber que era a minha merda, não
idêntica. Era a minha merda. Ele terminou, vestiu as calças, lavou
as mãos, esfregando o sabonete nas mãos embaixo da torneira, num
movimento circular, meio descuidado, o modo como eu lavo as mãos.
Olhou-me uma última vez e saiu. Terminei o banho.
Na
noite seguinte, deixei as chaves na mesinha ao lado da porta. Estava
morto de fome, acho que só tinha comido ao meio dia, um sanduíche
de frango, meio velho, no bar do meio. Nós gostávamos mais do café
do japa, mas subiu para um real, “não tá valendo isso tudo”,
disse uma das gurias. Eu não me importava muito, café é café. Uma
delas disse que o café de lá era queimado, e eu nunca entendi como
o café pode queimar, “se o café já é preto”, eu perguntei,
“como é que eu vou saber se ele tá queimado ou não?”, e uma
delas disse que só provando. “Café queimado tem gosto de velho”.
Eu acho que sempre tomei café queimado e nunca percebi, ou nunca me
importei. “Não sei que gosto tem velho. Nunca provei um velho”.
Só uma delas riu. Tomei o café do bar do meio e não notei
diferença. Talvez estivesse queimado também. Comi um sanduíche de
frango, que uma das gurias pediu um pedaço e reclamou que estava
velho. Eu mandei à merda, “tu reclama de tudo!”. Ela concordou.
Cheguei em casa à noite, deixei as chaves na mesinha. Ele estava na
cozinha, a geladeira com a porta escancarada. Ele comeu o resto do
pão com torresmo, e tomou minha cerveja. Ele era eu, na verdade. A
cerveja era minha, não era? Então, eu tomei a cerveja, e comi o pão
com torresmo. Não era eu, era ele, mas era eu. Fiquei assistindo ele
terminar de beber, catando os farelos no prato. Riscava com o dedo a
água acumulada no vidro do copo, nunca entendi bem por que isso
acontece com um copo gelado, a coisa da transferência de
temperatura, mas gostava de fazer desenhos naquela água que se
desfaziam assim que os terminava. A cerveja não era grande coisa,
foi o que deu pra comprar no fim do mês.
Outro dia eu acordei com uma canção do Roberto Carlos na cabeça. Acordar com o cérebro sintonizado numa rádio AM não tem qualquer explicação. Acontece muito comigo. Esse dia, era o Roberto. Meu bem, meu bem. Use a inteligência uma vez só. Quantos idiotas vivem só. Gosto mais na voz da Gal, naquele programa Ensaio, não lembro bem em que ano, setenta, eu acho. Pensei que essa conjugação tava errada. Não seria "quantos idiotas vivem sós"? Então eu começou a cantarolar a mesma música na cozinha, antes que eu me levantasse. Ouvi eu preparando o café. Senti o cheiro do café passando. Ainda tinha café. Esqueci que ainda tinha, mas eu deve ter lembrado. Eu ri pensando numa coisa, em outra canção do Roberto. Amanhã de manhã vou pedir um café pra nós dois. Ri muito. Fui até a cozinha. Eu não estava lá. Tomei café sozinho.
***
Outro dia eu acordei com uma canção do Roberto Carlos na cabeça. Acordar com o cérebro sintonizado numa rádio AM não tem qualquer explicação. Acontece muito comigo. Esse dia, era o Roberto. Meu bem, meu bem. Use a inteligência uma vez só. Quantos idiotas vivem só. Gosto mais na voz da Gal, naquele programa Ensaio, não lembro bem em que ano, setenta, eu acho. Pensei que essa conjugação tava errada. Não seria "quantos idiotas vivem sós"? Então eu começou a cantarolar a mesma música na cozinha, antes que eu me levantasse. Ouvi eu preparando o café. Senti o cheiro do café passando. Ainda tinha café. Esqueci que ainda tinha, mas eu deve ter lembrado. Eu ri pensando numa coisa, em outra canção do Roberto. Amanhã de manhã vou pedir um café pra nós dois. Ri muito. Fui até a cozinha. Eu não estava lá. Tomei café sozinho.
***
Quando éramos crianças, a gente
percebia que, cada vez que coisas novas vinham pra casa, as coisas
velhas começavam ou a parar de funcionar, ou a sumir. Não era
superstição. Ou era. Eu não sei dizer. Eu sei que, quando quebrava uma
taça, ou quando eu procurava o outro pé da meia na gaveta, era certo que
era de birra das coisas porque havia uma roupa, um eletrodoméstico, um
disco novo - quando ainda comprávamos discos.
Foi
engraçado quando eu comecei a namorar. Contei pra ela essa história.
Ela perguntou se alguma coisa tinha estragado desde que ela passou a ir
lá em casa. Eu disse que ainda não, mas um dia ela ia partir o meu
coração. Ela riu muito, disse que isso ia ficar bem num para-choque de
caminhão - quando ainda escreviam frasezinhas cretinas nos para-choques
de caminhão. Ela partiu meu coração mesmo assim.
Por isso que eu fiquei assustado quando eu apareceu aqui.
Eu, esse outro eu, que varre a casa do mesmo jeito que eu varro. Tenho que
admitir que a casa fica muito mais limpa se eu limpa do que quando eu
limpo. Os vidros, cara. Eu nunca tinha visto os vidros transparentes.
Meu medo de sair na rua durou uns três dias. Me imaginei envelhecendo,
ficando deformado, enquanto eu continuava vivendo a minha vida, nos
detalhes mais idiotas, como pegar mosquitos no ar, do jeito que eu faço.
Até
que uma das gurias veio aqui, pra saber se eu tava mal, e ficou puta,
"tu me mata de preocupação, não atende, não entra no face, e eu chego
aqui, e tu fez faxina, e eu achando que tu tinha te matado, ou morrido
no chuveiro que nem a minha tia" e eu perguntei "tá decepcionada porque
eu não morri?" e ela "não, porra, só me preocupei mesmo". Então a gente
saiu pra beber na casa de alguém que eu não conhecia.
***
Eu sentou-se no meu lugar na cama, com um pote de sorvete. Estava descalço
e estava usando a minha camisa do Iron. Eu me observava, ou melhor eu o observava,
assistia eu comendo. Peidou e arrotou umas duas vezes. Sem se
levantar, esticou o braço até a estante e pegou o livro que eu tinha que
ter devolvido semana passada, e já devia estar custando mais em multa
do que se tivesse comprado novo. Acompanhei a leitura. Abriu onde estava
o marcador. Na cena em que o fazendeiro pendura o menino pelos braços
no alto do galpão e deixa o cachorro brabo solto esperando a hora que o
menino caísse, eu riu muito.
Fiquei
aterrorizado com um pensamento que me ocorreu. No meu quarto, só no meu
quarto, para qualquer item dentro dele, havia algum tipo de regra que
me proibia de fazer alguma coisa relacionada àquele objeto, e que, de
uma forma ou de outra, eu seria punido se fizesse aquilo que a regra diz
pra não fazer. Olhei tudo em casa. Pra minha história. Pra minha vida.
Pro histórico do meu navegador da internet. Deus. Quase tudo à minha
volta pode ser usado como uma prova contra mim.
Eu pingou sorvete no chão, na cama e na minha camiseta do Iron. "Porra, che!"
Sentei no ônibus atrás de um sujeito que tinha uma mosca colada
atrás da cabeça. Um inseto, na verdade, mas era do tamanho de uma mosca
varejeira. Não tive coragem de tirá-la de onde estava. Fiquei intimidado
com a aparência do cara: cabelo raspado, óculos escuros esportivos
cobrindo até as sobrancelhas, caninos inferiores proeminentes. Acho que
eram os únicos dentes dele. Mastigava a língua, como fazia minha bisavó.
Era um personagem de Mad Max usando óculos de um personagem de Matrix.
Ele levantou, deu o sinal ao motorista, desceu na parada seguinte. Não
bateu nem atirou em ninguém, nem caminhou pela parede, nem entrou num
carro feito de tubos enferrujados. Pensei no quanto a vida é sem graça.
Cheguei no condomínio. Eu estava no elevador quando eu entrei. Me olhou como se fosse dizer algo. Ignorei. Quando chegamos no andar, deixei eu ir na frente. Estava com um inseto do tamanho de uma mosca varejeira colado na parte posterior da cabeça. Nem hesitei. Dei-lhe um tapão na nuca fazendo-o cair e bater a cara na parede do corredor. Antes que a porta do elevador fechasse, agarrei-o pela jaqueta, arremessei-o com toda a força para dentro. O inseto estava meio zonzo no chão. Pisei nele ouvindo um estalinho extremamente satisfatório.
Entrei em casa, larguei minhas coisas na sala. Fui tomar um banho e tocar uma punheta gratificante.
***
Cheguei no condomínio. Eu estava no elevador quando eu entrei. Me olhou como se fosse dizer algo. Ignorei. Quando chegamos no andar, deixei eu ir na frente. Estava com um inseto do tamanho de uma mosca varejeira colado na parte posterior da cabeça. Nem hesitei. Dei-lhe um tapão na nuca fazendo-o cair e bater a cara na parede do corredor. Antes que a porta do elevador fechasse, agarrei-o pela jaqueta, arremessei-o com toda a força para dentro. O inseto estava meio zonzo no chão. Pisei nele ouvindo um estalinho extremamente satisfatório.
Entrei em casa, larguei minhas coisas na sala. Fui tomar um banho e tocar uma punheta gratificante.
***
Quando o
casal Fode-fode se mudou para o apartamento de cima, a doce paz que
imperava nas madrugadas do meu edifício, a única coisa que ainda me
prendia àquele lugar, se foi por tempo indeterminado. Asseguro, o
tempo era realmente indeterminado. O casal Fode-fode não tinha
nenhuma regularidade, nem para começar as atividades, nem a duração
de cada sessão. A minha teoria é que eles trabalhavam para algum
site desses de putaria, onde os punheteiros sérios se cadastram para
assistir amateurs transando,
escolhendo entre couples
ou singles.
Punheteiros não sérios ou casos mais doentios não são do meu
escopo, então, me permito nem falar a respeito. A internet
facilitou a vida de tarados de
todo o tipo, e o bom senso e a fé na espécie são o limite daquilo
que se pode encontrar com meia dúzia de cliques. Não que eu entenda
muito disso. Confesso que fico curioso, mas sou das antigas: eu gosto
de filme pornô, com
atrizes e atores de quem eu lembro o nome (um salve aí para a Sylvia
Saint e o Rocco Sifredi!).
Mas
o casal Fode-fode, meus vizinhos, transavam em cima de mim,
pelo menos, duas vezes toda madrugada. Depois de perder completamente
a atenção dedicada ao meu trabalho, ou à leitura, precisava parar
e ir fazer outra coisa. Qualquer
coisa, por, pelo menos quinze minutos, ou meia hora, ou uma hora a
cada trepada. Depois de umas três semanas nesse ritmo, comecei a
entender mais ou menos a lógica das trepadas. Quando era o cara que
ficava por cima, as bombadas eram enérgicas, frenéticas e as molas
da cama batiam com força, quase até o assoalho, e eram breves sessões
de dez ou doze bombadas, com uma breve pausa, até começar de novo.
Geralmente a primeira transa da noite era assim. O outro padrão, que
eu entendia como quando a guria estava por cima, as sessões eram de
vinte a vinte e cinco bombadas mais longas e dinâmicas, rápidas,
mas com um ritmo menos objetivo que as dele. Tinha também aquelas em
que o box da cama
batia contra a parede e o soalho simultaneamente, e essas sequências
eram tipo 6+6+6+6+15. Essas duas variantes eram mais comuns nas
transas do meio da madrugada, com alguma alteração nas transas do
início da manhã – horário que oscilava entre cinco e meia e sete
horas. Aos sábados, quando eu ficava em casa praticamente o dia
todo, meus intervalos de sono eram de, no máximo, três horas,
intercalados por um surto intermitente de trabalho árduo dos meus
vizinhos. Eu pensava que era impossível que alguém tivesse tanta
disposição para o sexo sem nenhuma compensação, só como prática
desportiva. E como isso estava passando de dois meses, realmente
confirmava a minha tese de que só a sensação de novidade entre os
parceiros não seria uma justificativa.
Então,
numa madrugada em que os vizinhos estavam especialmente inspirados e
bem dispostos (pelo ritmo, fiquei na dúvida sobre quem estava por
cima, ou por trás, ou... enfim...) eu
levantou-se da cama resoluto. Tomou um banho, fez a barba,
penteou-se, vestiu-se dosando entre o desleixo e o esmero e saiu. Fui
atrás. Eu tomou as
escadas, percorreu o corredor, parou em frente à porta do Casal
Fode-fode. Eu, aflito, mas curiosíssimo, acompanhei escondido na
curva da escadaria. Eu
tocou a campainha, uma vez. Uns minutos depois, alguém abriu uma
frestinha da porta. Eu estava
calmo. Gesticulou, apontando em direção ao chão, e encolhendo os
ombros, fazendo um gesto de “bah!”, com ambas as mãos, como quem
deixa escapar um balão. Mais meio minuto, e a porta se abre
totalmente.
Não sei o que aconteceu lá, sinceramente. Durante as semanas que
passaram, eu aparecia
de manhã pela porta da frente. Eu evitava olhá-lo,
para não deixá-lo constrangido.
Ele também não me olhava, mas sorríamos, meio cúmplices, cada um
preparando seu café. Eu me arrumava para ir pra aula, e eu,
depois de comer, ia para um banho demorado, de quase uma hora. Não
sei o que fazia no resto do dia, se ficava dormindo ou ia visitar os
novos amigos. Talvez eu até
estivesse ganhando uma grana com eles; talvez tenham feito um
cadastro de threesome
ou mmf no site. Não
sei mesmo. Eu nem acordo mais de madrugada.
2 comentários:
Penso que "isto" é muito bom. Acho que é muito bom. Há um aspeto a que já me vou acostumando com a sua escrita: a de uma grande honestidade. E depois tem a "novidade" não tão novidade na escrita sul-americana: o outro, o sósia, o outro eu. E o que isso abre de horizontes.
Continuam a aparecer pérolas nesta nossa Sam.
Puxa. muito obrigado, Joaquim. Não sei o que dizer.
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