DESVELANDO O “PRESIDENTE” DA PRESIDENTA
Para a amiga Henriette Effenberger
O linguista e
professor Marcos Bagno, em seu livro
A norma oculta (Parábola Editorial, 2003), afirma que “a linguagem, de todos os instrumentos de
controle e coerção social, talvez seja o mais complexo e sutil” (p. 16). Um
exemplo dessa complexidade e sutileza é a forma com que certa palavra tem sido
tratada – destacadamente pelo seu não uso – nos últimos anos no Brasil, tanto
pela grande mídia como por usuários da internet, entre outros segmentos da
população. Uma palavra que traz poder
em sua essência, e provavelmente por isso mesmo tem sido o foco de resistência
aparentemente inofensiva: “presidenta”.
Independentemente
de alinhamentos ideológicos ou do número que se tenha registrado nas urnas nas últimas
eleições presidenciais, há que reconhecer que a presidenta Dilma Rousseff, durante
todo o seu primeiro mandato, esforçou-se para emplacar sua opção por esse vocábulo, quase sempre sem
sucesso. Nas redes sociais, por exemplo, muitas foram – e ainda aparecem, embora
com menos frequência – as gozações em torno dessa palavra até então
praticamente inexistente em nosso imaginário linguístico, todas elas apontando
para a tentativa de ridicularizar a ocupante do principal cargo político do
país por uma suposta ignorância manifesta por tal opção. Uma simples consulta a
um bom dicionário pouparia essas pessoas de manifestarem, de forma tão
escancarada, a própria ignorância.
O
Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa
(Editora Positivo – a minha é a 3ª edição, de 2004) apresenta desta forma o
verbete: “presidenta. [Fem. de presidente.] S. f. 1. Mulher que preside. 2. Mulher de um presidente”. Na
sequência: “presidente. [Do lat. praesidente.] S. 2 g. 1. Pessoa que
preside. [...]”. O Vocabulário
ortográfico da língua portuguesa (mais conhecido como “Volp” – o meu é o da 5ª edição, de 2009), publicação da Academia
Brasileira de Letras que traz os registros de todas as palavras oficialmente
incorporadas à nossa língua, com suas respectivas classes gramaticais, mas sem
seus significados, também consigna “presidenta” como substantivo feminino e “presidente”
como adjetivo de dois gêneros e ainda como substantivo masculino. Ora, se o famoso
Aurelião registra o vocábulo “presidente” como substantivo de dois gêneros (ou seja, que pode tanto ser
utilizado referindo-se a alguém do sexo masculino como a uma pessoa do sexo
feminino) e o Volp o apresenta como
adjetivo também de dois gêneros, então presidente pode se referir a uma mulher
ocupante do principal cargo de direção do país, certo? Certíssimo. E o fato de
querer ser chamada de “presidenta” não passaria de uma manifestação de vaidade
da senhora Dilma Rousseff, correto? Pode ser, só que não (como diria a
Andressa, minha filha adolescente).
A
meu ver, quando a presidenta optou pelo uso preferencial desse vocábulo, sua
intenção foi destacar o fato histórico de pela primeira vez o mais alto cargo
de poder do Brasil ser ocupado por uma mulher – em um país arraigadamente machista.
Um protesto inteligente e sutil contra a situação de desigualdade em que vivem
milhões de mulheres na terra brasilis,
que recebem salários inferiores aos dos homens na maioria dos cargos laborais –
principalmente na iniciativa privada –, ainda que desempenhando as mesmas
atividades; uma referência à injusta realidade em que, embora maioria da
população, conforme o último senso, as mulheres ocupam menos de um terço dos
cargos eletivos no Congresso Nacional e nas assembleias e câmaras legislativas
Brasil afora; uma lembrança de que somente há poucos anos uma mulher se tornou
presidenta (embora sem dar importância à utilização desse vocábulo) da Academia
Brasileira de Letras, assim como outra, do Supremo Tribunal Federal (instituições
em que também as mulheres são minoria); um grito silencioso, enfim, contra a
realidade em que milhares de mulheres continuam sendo agredidas, diária e
diuturnamente, pelos seus companheiros – e nas variadas classes sociais –,
apesar do avanço legislativo com o advento da Lei Maria da Penha, sendo ainda
discriminadas nas delegacias de polícia quando tentam registrar tais ocorrências.
O
britânico Norman Fairclough – um dos
maiores sociolinguistas da atualidade e um dos fundadores da corrente “Análise
crítica do discurso” – ensina que “as
ideologias embutidas nas práticas discursivas são muito eficazes quando se
tornam naturalizadas e atingem o status
de ‘senso comum’” (Discurso e mudança
social, Editora UnB, 2001, p. 117). Talvez essa afirmação explique a resistência
da grande mídia, com raríssimas exceções (na imprensa escrita, a revista Carta Capital tem sido uma das poucas,
se não a única, a optar pelo vocábulo em análise – não por acaso, uma publicação
aliada aos setores político-sociais menos conservadores), se esforçarem para “naturalizar”
o uso do termo “presidente” com relação a uma mulher, forçando, pela repetição
excessiva, a transformação dessa prática em “senso comum”. Isso ficou evidente
no dia 1º de janeiro do ano que se inicia, quando todos – é oportuno repetir, todos – os canais de tevê que
transmitiram a posse da presidenta no seu segundo mandato presidencial fizeram
questão de ignorar a preferência dela pelo incômodo vocábulo. Nem mesmo às repórteres
e/ou comentaristas mulheres foi dado o direito de utilizá-lo, ainda que uma vez
ou outra. É o caso de nos perguntarmos se nenhuma delas – umazinha que fosse – não gostaria de ter realçado a condição de mulher
de Dilma Rousseff com o adendo do termo “presidenta” ao nome desta.
Muitos dirão
que se trata de um detalhe insignificante, uma besteira mesmo, a opção pelo uso
de um ou outro vocábulo, e trazer isso à tona não passaria de uma tola
tentativa de incorporar ao debate um viés puramente sexista (eis o principal
efeito da internalização das ideologias embutidas nas práticas discursivas de que
nos fala Fairclough). Se assim fosse, por que, então, a resistência em alternar
o uso de um e outro vocábulo? Por que pelo menos uma das emissoras de tevê, um
dos jornais de grande circulação, uma das revistas (excluindo a já referida) não
utilizar o vocábulo preferido por Dilma Rousseff? Não seria o fato de
relembrarmos que os maiores grupos da imprensa – tanto a impressa quando a
radiofônica e a televisiva – estão nas mãos de uma meia dúzia de famílias de
perfil assumidamente conservador?, de formação e práticas que perpetuam, de
forma “complexa e sutil”, o coronelismo patriarcal que sempre dominou as variadas
instâncias do poder em nosso país? Não fazer tal análise, internalizando como “natural”
uma “mera opção vocabular”, é não se dar conta da importância da linguagem como
instrumento de controle e coerção social, para retomar a assertiva transcrita
no início deste texto e que serviu de base a esta reflexão.
Cabe,
aqui, o arremate (pontual, já que a proposta é de um início de debate, com variadas
contribuições) com Fairclough, na obra citada (p. 117): “[...] minha referência a ‘transformação’ aponta a luta ideológica como
dimensão da prática discursiva, uma luta para remoldar as práticas discursivas
e as ideologias nelas construídas no contexto da reestruturação ou da
transformação das relações de dominação”. Daí a importância de se buscar
entender – e combater, quando for o caso – o porquê da massificação do uso de um determinado vocábulo,
com a sistemática negação de outro, em um determinado contexto histórico.
Aquilo
que não está ainda é o novo. E o novo é, por si mesmo, a mudança em progresso. E
por mais que incomode – e sempre haverá de incomodar – os que se beneficiam do
estado de coisas reinante, o novo acaba por prosperar. Porque o novo tem o
viço, a força irrefreável. E por isso mesmo, como bem disse o poeta, o novo
sempre vem!
Um
feliz ano novo para todos!
Edelson Nagues
5 comentários:
Análise e texto perfeitos, Edelson.
Tocou em vários pontos importantes, de forma impecável. Enquanto isso, muitos não percebem a realidade da tele-ilusão e como, através dela, o status quo ainda é fácil de ser mantido.
A primeira coisa que imaginei foi esse texto sendo usado em algum vestibular/concurso.
Abraço e um feliz ano novo!
Mto obrigado pela leitura e pelo comentário, Antônio. Precisamos conhecer o poder e as formas de uso da linguagem (ou de sua manipulação) para não nos deixarmos nos enganar. Grandeabraço e feliz ano novo pra vc tb!
Texto espetacularmente bem escrito, com a competência que é sua marca, Edelson. Parabenizo e reverencio o autor, embora considere com razão a mídia em não mudar o vocábulo usado como pano de fundo de sua reflexão. Seria incorreto e esvaziaria a elegância da palavra.
Que artigo maravilhoso, amigo Edelson! Gostaria de destacar:"É o caso de nos perguntarmos se nenhuma delas – umazinha que fosse – não gostaria de ter realçado a condição de mulher de Dilma Rousseff com o adendo do termo “presidenta” ao nome desta". Temos visto atitudes extremamente deselegantes e tendenciosas o tempo inteiro a que a mídia alimenta sem-fim. Não me lembro de críticas a trajes presidenciais em terno e gravata, mas os vestidos das mulheres "no poder", em geral, são severamente criticados para o bem/mal. No caso da Dilma, forçosamente para o mal. Enfatizando um explícito machismo, inclusive por parte de mulheres, também senhoras e dignas de respeito, mas que a ele não se dão em postagens ridicularizantes. Muito pertinente seu texto. Mulher é presidenta e ponto final; parabéns às que conquistaram tal posto.
Mto obrigado, Cecilia e Cris. Essa e outras questões envolvendo linguagem e mídia devem estar na pauta de nossas reflexões, sempre. Abraços.
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