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sábado, 3 de janeiro de 2015

DESVELANDO O PRESIDENTE DA PRESIDENTA

Para a amiga Henriette Effenberger

O linguista e professor Marcos Bagno, em seu livro A norma oculta (Parábola  Editorial, 2003), afirma que “a linguagem, de todos os instrumentos de controle e coerção social, talvez seja o mais complexo e sutil” (p. 16). Um exemplo dessa complexidade e sutileza é a forma com que certa palavra tem sido tratada – destacadamente pelo seu não uso – nos últimos anos no Brasil, tanto pela grande mídia como por usuários da internet, entre outros segmentos da população. Uma palavra que traz poder em sua essência, e provavelmente por isso mesmo tem sido o foco de resistência aparentemente inofensiva: “presidenta”.
            Independentemente de alinhamentos ideológicos ou do número que se tenha registrado nas urnas nas últimas eleições presidenciais, há que reconhecer que a presidenta Dilma Rousseff, durante todo o seu primeiro mandato, esforçou-se para emplacar  sua opção por esse vocábulo, quase sempre sem sucesso. Nas redes sociais, por exemplo, muitas foram – e ainda aparecem, embora com menos frequência – as gozações em torno dessa palavra até então praticamente inexistente em nosso imaginário linguístico, todas elas apontando para a tentativa de ridicularizar a ocupante do principal cargo político do país por uma suposta ignorância manifesta por tal opção. Uma simples consulta a um bom dicionário pouparia essas pessoas de manifestarem, de forma tão escancarada, a própria ignorância.
            O Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa (Editora Positivo – a minha é a 3ª edição, de 2004) apresenta desta forma o verbete: “presidenta. [Fem. de presidente.] S. f. 1. Mulher que preside. 2. Mulher de um presidente”. Na sequência: “presidente. [Do lat. praesidente.] S. 2 g. 1. Pessoa que preside. [...]”. O Vocabulário ortográfico da língua portuguesa (mais conhecido como “Volp” – o meu é o da 5ª edição, de 2009), publicação da Academia Brasileira de Letras que traz os registros de todas as palavras oficialmente incorporadas à nossa língua, com suas respectivas classes gramaticais, mas sem seus significados, também consigna presidenta como substantivo feminino e “presidente” como adjetivo de dois gêneros e ainda como substantivo masculino. Ora, se o famoso Aurelião registra o vocábulo presidente como substantivo de dois gêneros (ou seja, que pode tanto ser utilizado referindo-se a alguém do sexo masculino como a uma pessoa do sexo feminino) e o Volp o apresenta como adjetivo também de dois gêneros, então presidente pode se referir a uma mulher ocupante do principal cargo de direção do país, certo? Certíssimo. E o fato de querer ser chamada de “presidenta” não passaria de uma manifestação de vaidade da senhora Dilma Rousseff, correto? Pode ser, só que não (como diria a Andressa, minha filha adolescente).
            A meu ver, quando a presidenta optou pelo uso preferencial desse vocábulo, sua intenção foi destacar o fato histórico de pela primeira vez o mais alto cargo de poder do Brasil ser ocupado por uma mulher – em um país arraigadamente machista. Um protesto inteligente e sutil contra a situação de desigualdade em que vivem milhões de mulheres na terra brasilis, que recebem salários inferiores aos dos homens na maioria dos cargos laborais – principalmente na iniciativa privada –, ainda que desempenhando as mesmas atividades; uma referência à injusta realidade em que, embora maioria da população, conforme o último senso, as mulheres ocupam menos de um terço dos cargos eletivos no Congresso Nacional e nas assembleias e câmaras legislativas Brasil afora; uma lembrança de que somente há poucos anos uma mulher se tornou presidenta (embora sem dar importância à utilização desse vocábulo) da Academia Brasileira de Letras, assim como outra, do Supremo Tribunal Federal (instituições em que também as mulheres são minoria); um grito silencioso, enfim, contra a realidade em que milhares de mulheres continuam sendo agredidas, diária e diuturnamente, pelos seus companheiros – e nas variadas classes sociais –, apesar do avanço legislativo com o advento da Lei Maria da Penha, sendo ainda discriminadas nas delegacias de polícia quando tentam registrar tais ocorrências.
            O britânico Norman Fairclough – um dos maiores sociolinguistas da atualidade e um dos fundadores da corrente “Análise crítica do discurso” – ensina que “as ideologias embutidas nas práticas discursivas são muito eficazes quando se tornam naturalizadas e atingem o status de ‘senso comum’” (Discurso e mudança social, Editora UnB, 2001, p. 117). Talvez essa afirmação explique a resistência da grande mídia, com raríssimas exceções (na imprensa escrita, a revista Carta Capital tem sido uma das poucas, se não a única, a optar pelo vocábulo em análise – não por acaso, uma publicação aliada aos setores político-sociais menos conservadores), se esforçarem para “naturalizar” o uso do termo “presidente” com relação a uma mulher, forçando, pela repetição excessiva, a transformação dessa prática em “senso comum”. Isso ficou evidente no dia 1º de janeiro do ano que se inicia, quando todos – é oportuno repetir, todos – os canais de tevê que transmitiram a posse da presidenta no seu segundo mandato presidencial fizeram questão de ignorar a preferência dela pelo incômodo vocábulo. Nem mesmo às repórteres e/ou comentaristas mulheres foi dado o direito de utilizá-lo, ainda que uma vez ou outra. É o caso de nos perguntarmos se nenhuma delas – umazinha que fosse – não gostaria de ter realçado a condição de mulher de Dilma Rousseff com o adendo do termo “presidenta” ao nome desta.
Muitos dirão que se trata de um detalhe insignificante, uma besteira mesmo, a opção pelo uso de um ou outro vocábulo, e trazer isso à tona não passaria de uma tola tentativa de incorporar ao debate um viés puramente sexista (eis o principal efeito da internalização das ideologias embutidas nas práticas discursivas de que nos fala Fairclough). Se assim fosse, por que, então, a resistência em alternar o uso de um e outro vocábulo? Por que pelo menos uma das emissoras de tevê, um dos jornais de grande circulação, uma das revistas (excluindo a já referida) não utilizar o vocábulo preferido por Dilma Rousseff? Não seria o fato de relembrarmos que os maiores grupos da imprensa – tanto a impressa quando a radiofônica e a televisiva – estão nas mãos de uma meia dúzia de famílias de perfil assumidamente conservador?, de formação e práticas que perpetuam, de forma “complexa e sutil”, o coronelismo patriarcal que sempre dominou as variadas instâncias do poder em nosso país? Não fazer tal análise, internalizando como “natural” uma “mera opção vocabular”, é não se dar conta da importância da linguagem como instrumento de controle e coerção social, para retomar a assertiva transcrita no início deste texto e que serviu de base a esta reflexão.
            Cabe, aqui, o arremate (pontual, já que a proposta é de um início de debate, com variadas contribuições) com Fairclough, na obra citada (p. 117): “[...] minha referência a ‘transformação’ aponta a luta ideológica como dimensão da prática discursiva, uma luta para remoldar as práticas discursivas e as ideologias nelas construídas no contexto da reestruturação ou da transformação das relações de dominação”. Daí a importância de se buscar entender – e combater, quando for o caso – o porquê da massificação do uso de um determinado vocábulo, com a sistemática negação de outro, em um determinado contexto histórico.  
            Aquilo que não está ainda é o novo. E o novo é, por si mesmo, a mudança em progresso. E por mais que incomode – e sempre haverá de incomodar – os que se beneficiam do estado de coisas reinante, o novo acaba por prosperar. Porque o novo tem o viço, a força irrefreável. E por isso mesmo, como bem disse o poeta, o novo sempre vem!
            Um feliz ano novo para todos!



Edelson Nagues

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Edelson Nagues
(nome literário de EDELSON RODRIGUES NASCIMENTO) é natural de Rondonópolis/MT e radicado em Brasília/DF. Estudou Direito e Filosofia, com pós-graduação em Língua Portuguesa. É poeta, escritor, revisor de textos e servidor público. Na década de 1980 e início da década seguinte, em seu estado de origem, atuou na área musical, como vocalista e principal letrista do Grupo Reciclagem, tendo participado de vários festivais universitários e de festivais regionais e nacionais da Caixa Econômica Federal, obtendo diversas premiações, inclusive como intérprete e letrista. Na época, funcionário da CEF, atuava como representante do então recém-criado Conjunto Cultural (hoje denominado Caixa Cultural) em Mato Grosso. Premiado e/ou selecionado para coletâneas em vários concursos literários, entre os quais se destacam: Concurso Nacional de Poesia “Adilson Reis dos Santos” (2012, Ponta Grossa/PR), XXXIII Concurso “Fellipe d’Oliveira” (2011, Santa Maria/RS), Prêmio Prefeitura de Niterói (2011), XXI Concurso Nacional de Contos “José Cândido de Carvalho” e XII FestiCampos de Poesia Falada (ambos em 2011, Campos dos Goytacazes/RJ), Concurso Novo Milênio de Literatura (Vila Velha/ES, 2010), IV Concurso Nacional de Contos do SESC-Amazonas (2010, Manaus/AM), VI Desafio dos Escritores (Brasília/DF, 2010), XL Concurso Literário “Escriba” (Piracicaba/SP, 2009). É autor dos livros Humanos (coletânea de contos premiados) e Águas de Clausura (de poesia, vencedor do X Prêmio Livraria Asabeça), ambos publicados pela Scortecci Editora. É membro correspondente da Academia Cachoeirense de Letras (de Cachoeiro de Itapemirim/ES) e mantém (ou tenta manter) o blog pessoal www.senaoescrevodoi.blogspot.com.
todo dia 03


5 comentários:

Análise e texto perfeitos, Edelson.

Tocou em vários pontos importantes, de forma impecável. Enquanto isso, muitos não percebem a realidade da tele-ilusão e como, através dela, o status quo ainda é fácil de ser mantido.

A primeira coisa que imaginei foi esse texto sendo usado em algum vestibular/concurso.


Abraço e um feliz ano novo!

Mto obrigado pela leitura e pelo comentário, Antônio. Precisamos conhecer o poder e as formas de uso da linguagem (ou de sua manipulação) para não nos deixarmos nos enganar. Grandeabraço e feliz ano novo pra vc tb!

Texto espetacularmente bem escrito, com a competência que é sua marca, Edelson. Parabenizo e reverencio o autor, embora considere com razão a mídia em não mudar o vocábulo usado como pano de fundo de sua reflexão. Seria incorreto e esvaziaria a elegância da palavra.

Que artigo maravilhoso, amigo Edelson! Gostaria de destacar:"É o caso de nos perguntarmos se nenhuma delas – umazinha que fosse – não gostaria de ter realçado a condição de mulher de Dilma Rousseff com o adendo do termo “presidenta” ao nome desta". Temos visto atitudes extremamente deselegantes e tendenciosas o tempo inteiro a que a mídia alimenta sem-fim. Não me lembro de críticas a trajes presidenciais em terno e gravata, mas os vestidos das mulheres "no poder", em geral, são severamente criticados para o bem/mal. No caso da Dilma, forçosamente para o mal. Enfatizando um explícito machismo, inclusive por parte de mulheres, também senhoras e dignas de respeito, mas que a ele não se dão em postagens ridicularizantes. Muito pertinente seu texto. Mulher é presidenta e ponto final; parabéns às que conquistaram tal posto.

Mto obrigado, Cecilia e Cris. Essa e outras questões envolvendo linguagem e mídia devem estar na pauta de nossas reflexões, sempre. Abraços.

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