Como leitor - e, além de leitor, um sujeito um tanto lento - passei anos lendo e me deliciando com histórias passadas em trens e navios. Passei por romances policiais cujas tramas se desenvolviam ao longo de um cruzeiro pelo rio Nilo ou do Expresso do Oriente, contos em torno de cavalheiros dividindo cabines de trem com estranhos; Ana Karenina ...
O demorar desses meios de transporte, em geral quando os viajantes eram exatamente viajantes e não turistas, sempre me fascinou a ponto de, por muito tempo, acreditar estar no século errado (a começar por ainda chamar trem e navio de meios de transportes, recusando-me estoicamente a usar o detestável termo "modais"). O vagar do tempo, durante o qual as tramas se desenvolviam, os personagens se revelavam, se odiavam e se matavam, é algo absolutamente impensável neste detestavelmente acelerado início de século XXI.
Vila-Matas escreveu um conto cujo personagem se dedicava a fazer diversas viagens em uma determinada linha de ônibus em Barcelona, em busca de histórias e dramas e personagens. Ele busca uma mulher misteriosa, tentando imaginar seu rosto e sua vida.
Sempre fui um defensor da lentidão e da morosidade. À beira do insuportável. Minha mulher, por vezes, fica absolutamente enlouquecida com minha convicta dedicação à lerdeza.
Até que, na última semana, conheci o Marcelo. E a história, a seguir, de fato ocorreu nesta passagem de ano...
Não sei o que ele faz; não vi sequer seu rosto. A rigor, não o conheci. Mas é impossível não simpatizar com ele. Eu estava sentado na poltrona de um Airbus, atrás dele. Nos trens e navios as pessoas circulam, se escondem, pensam. Nos aviões - e, em especial, na classe econômica - não há tempo nem espaço para confidências e segredos. Todos sabemos o que se passa ao nosso redor. Ficamos parados e expostos a tudo e a todos.
Sentei-me logo no início do embarque. Minutos depois, um casal se sentou em poltronas das filas 5 e 6, um em frente ao outro. Em seguida, um jovem casal, um pouco sem jeito, procurava seu espaço. A menina:
- Mãe, você poderia se sentar ao lado do pai para que eu e Marcelo possamos nos sentar juntos?
- Deixa de frescura; sente-se com seu pai que o Marcelo viaja ao meu lado.
Um começo nada auspicioso para Marcelo. A menina fez uma careta, já antevendo algo. Uma viagem entre Belo Horizonte e Rio de Janeiro ao lado da sogra - ou da futura sogra (ou, creio e torço, sua ex-futura sogra) esperava por Marcelo.
- Menino! Sua mãe é uma grossa! Disse para que não se preocupasse contigo e ela logo me grasnou que você sabe se cuidar muito bem...
- Minha mãe é muito simples e de pouco estudo... não entende uma ironia ou uma piada. A senhora deveria ter conversado com meu pai...
- Que nada! Ela é grossa mesmo! E seu pai vive às turras com o seu irmão Alberto. Aliás, ele já é casado há três anos e nada de filhos... Vai me dizer que vocês são estéreis!
- Mas, senhora, eles ainda estão acertando as coisas...o Alberto está estudando para concurso e a Luísa tem trabalhado muito...
A sogra do Marcelo estava aterrorizando o genro e, ato reflexo, os passageiros sentados nas poltronas próximas. Imediatamente me lembrei dos antigos romances que desenrolavam por semanas a bordo de navios e trens. Como disse Amyr Klink, ao contrário das incríveis viagens náuticas de nossos antepassados, tudo o que o homem conseguiu dizer depois de quase meio século de exploração espacial foi "A Terra é azul", o que já dava a ideia, na década de 60, de que a velocidade de nossos deslocamentos acabaria com qualquer traço literário da nossa civilização.
A comissária oferece um suco de laranja - artificialmente natural (não abro mão da minha Coca-Cola zero, naturalmente artificial). Marcelo fez um breve movimento para aceitá-lo, mas a Sogra (sim, a partir de agora, ela merece a maiúscula) o deteve - Não, minha filha, obrigada, ele não quer nada não.
E assim se passaram os quarenta e cinco minutos de voo. Fiquei completamente nauseado com a conversa, que mais parecia um monólogo.
No desembarque, ao nos dirigirmos às esteiras de bagagens, a Sogra avisou o genro:
- A viagem foi ótima, e teremos muito o que conversar agora. Ainda restam as oito horas para Nova York...
Marcelo suspira profundamente. Vira-se para o sogro. Este, tentando descontrair o ambiente, professa: Adão e Eva foram expulsos do Paraíso, tiveram que suar para comer. Mas nenhum dos dois recebeu uma sogra. Somos teologicamente inexistentes, meu filho. Coragem, rapaz!
Marcelo abre um sorriso amarelo, olha para a noiva (ou seria sua namorada?) e dá uma ligeira corrida para encontrá-la. O homem começa a discutir com a mulher. E os quatro partem para o terminal internacional do aeroporto.
E, a cada momento que se passava, a cada frase dita por Sogra, mais me envergonhava de defender a lentidão das viagens - imagine o Marcelo num trem, atravessando as estepes russas com a Sogra ao seu lado desenvolvendo seu inquérito de vida pregressa, e sua bela namorada no banco de trás, ao lado de um pai absolutamente transparente e constrangido. A partir de hoje, defendo ardorosamente viagens rápidas, e começo a achar que o teletransporte é a única solução adequada às nossas vidas. A eternidade de um saquinho de amendoim com suco de laranja. Força, Marcelo!
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