– Deixa a ponta solta.
Deixa essa ponta solta, repetiu a mulher vestida com panos escuros.
A ela tinham-na vestido com tecidos garridos, as mesmas mulheres que lhe
tinham dito que amanhã iria ao mercado da aldeia.
Uma delas veio compor a fita, e a ponta ficou pendendo disfarçada numa
dobra do tecido. Era um pedaço de cabedal ou imitando, do que teria sido um cinto.
A mulher vestida de negro aquiesceu:
– Isso. Deixa-a, assim, solta.
E aproximou-se como se fosse contar-lhe um segredo.
Fátima sentiu-lhe até o bafo.
Sentiu-lhe os lábios grossos, muito grossos e encarnados, quase a
roçarem-lhe o lóbulo da orelha que sobrava por debaixo do lenço.
A mulher apertou-lhe a mão por cima do pano colorido.
Um pano com manchas vermelhas e azuis e com bolas em amarelo canário,
entremeando.
A mulher agarrava-lhe a mão e deslizava-a por baixo do tecido, e assim,
pretendia mostrar que, com a ponta solta, bastavam dois dedos.
As mulheres tinham-lhe dito: vais levar uma surpresa ao teu tio Pedro.
Levas a surpresa bem presa no teu corpo, tinham elas acrescido.
E que puxasse a fita apenas quando chegasse junto da bancada, tinham
repetido, isso, uma vez e outra. E no entanto, a falar baixíssimo, os lábios
gotejando humidades sobre o lóbulo da orelha que assomava debaixo do lenço
colorido, a mulher vestida de negro ainda indagou, apenas como se afirmasse
certezas desejadas:
– Sabes como fazes, não sabes?
Mas nem esperou resposta.
Na sala diminuta estavam a mulher de negro, e a mulher que tratou de fazer
com que a ponta ficasse solta, e duas outras mulheres acocoradas como rolos de
tecidos por ali jogados; e, além delas, dois homens permaneciam hirtos, de pé,
junto à única porta.
As mulheres tinham dito: eles depois levam-te.
Fátima percebeu que seriam aqueles.
Fátima vestida com panos de cores garridas como nos dias em que ia ao
mercado da aldeia com a mãe e as tias e os primos e primas.
***
Ela não tinha respondido, mas sabia muito bem como devia.
As mulheres tinham-lhe dito. Tinham-lhe explicado e repetido enquanto
a vestiam com panos garridos e juravam que sim, que ela comeria frutos. Mangas
e papaia. Talvez tâmaras se já as houvesse.
Vais fazer uma surpresa ao teu tio Pedro, tinham-lhe elas explicado.
E Fátima foi com os homens por caminhos e estradas.
Aos balanços do carro, a prenda do tio incomodava-a. Magoava-lhe o corpo
sobretudo do lado direito onde tinham deixado uma ponta solta.
Ela sabia que só devia puxar quando estivesse na bancada de frutas. Lá,
onde deixaria a surpresa que levava agarrada ao corpo.
As mulheres tinham-lhe dito. Elas tinham-lhe dito e repetido.
Mas ainda assim, ela deve ter percebido mal.
Ou percebeu, mas atrapalhou-se.
Quando chegou, já o tio Pedro estava colocando frutas na bancada. Para que
ele não a visse, para ser mesmo surpresa como as mulheres lhe tinham ensinado,
escondeu-se por detrás de uma resma de cestas que estavam, por ali,
empilhadas.
Só então estendeu a mão e tocou a ponta solta. Tocou apenas e esperou um
pouco como se estivesse ouvindo a voz das mulheres: pegas com força e puxas para baixo. Elas tinham insistido.
Só depois puxou.
Mas qualquer coisa deve ter corrido mal.
Aquela dor que vinha sentido, do lado direito, mais ainda que do outro
lado, tornou-se muito intensa e espalhou-se pelo corpo todo. E terá sido porque
ela segurou demasiado levezinho. Ou porque terá puxado para o lado em vez de
puxar para baixo. Ou ela teria até, desgovernada, puxado para cima.
O que quer que tenha sido, saiu errado, e o seu grito ressoou, e era como
se todos no mercado estivessem gritando. Ou estariam. Ou era ela apenas.
Fátima não percebia senão que tinha sido um verdadeiro horror depois que
puxou a ponta que as mulheres tinham deixado solta por baixo dos panos.
Desfeita em cacos a surpresa que trazia para o seu tio.
E no mercado um sururu ensurdecedor como se tudo se tivesse revirado
debaixo dum céu toldado de vermelho e negro a fazer lembrar os dias em que os
vizinhos e os pais faziam queimadas nos terrenos antes da próxima sementeira.
Então, era um calor imenso, e nem assim tão grande como aconteceu mal ela puxou
a ponta para que se desprendesse a surpresa que trazia para o tio.
No tempo das queimadas, os meninos da aldeia ajudavam a manter o fogo longe
das casas. Iam todos, ela e os irmãos e os primos, a bater a terra com
vassouras feitas de ramos verdes. Tinha sido assim, antes de os terem levado.
Dois camiões carregados com crianças raptadas da aldeia. Fátima ia com eles.
Tinha sido muito antes de ter menstruado. Nem por isso criara corpo. Miudinha,
sangrara uma vez apenas. O sangue a sair-lhe do corpo, e o seu nem era um
sangue assim quase negro como aquele que agora se espalhava pelo chão do
mercado.
Ou ela delira.
Ou será a dor imensa que ela sente que a faz parecer que o mercado, todo
ele, arde como era lá na aldeia em dias de queimada; que, como ela, tantos no
mercado estão empapados no seu próprio sangue.
Estará ela confundindo e nem o seu corpo estará a desmembrar-se, um braço e
uma perna para cada lado como se dava com as lagartixas: cada pedaço do bicho
ainda remexendo, cada bocado com a consciência que Deus lhe deu, dizia assim o
Damião que era o sábio lá da aldeia.
Fátima que não percebe e nem consegue explicar o que fez errado.
Sabe que estragou a surpresa que trazia para o tio. Isso ela sabe, e está
muito triste.
3 comentários:
Que texto, Maria de Fátima! Que texto! Só agora parei para te ler, porque te ler é coisa para se fazer com muita calma, saboreando as nuanças, percebendo o bordado magnífico das sutilezas que vão num crescendo até o ápice. Texto de dar aperto no leito, de doer a alma. Tão inocentes, esses anjinhos, e usadas para a tragédia. O fanatismo, a ignorância e seus desdobramentos me apavoram. Um final perfeito, em que a pobrezinha ainda pensa que errou! Parabéns!!!
Excelente texto! Parabéns, Maria de Fátima!
obrigada Cecília e Cinthia
muito obrigada
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