– Óptimo,
óptimo …
As palavras
enrolam-se-lhe, pastosas, sob o efeito do antidepressivo que tomou empurrado por
um gole de vodka com sumo de laranja.
– Óptimo!
– ainda repete.
Maria
Teresa tinha acabado de dizer-lhe, e ele tem necessidade de expfressar
contentamento mesmo sabendo que mente, mesmo perante ela que sabe. Ainda assim,
afirma, a compor melhor o quadro:
–
Estou tão contente, tão feliz por eles.
E
despede-se.
Frederico
Esteves a baloiçar o corpo magro de um lado ao outro da sala imensa que é o estúdio
onde vive. O meu tugúrio, como diz, por graça.
Maria
Teresa tinha sido directa. Nem boa tarde, nem olá xuxu como ela gosta de
tratá-lo. Atirou certeira: é apenas para te dizer que acabei de casá-los. Assim,
sem mais delongas, e ele naquele: óptimo, óptimo, tão amaricado que, mesmo pela
voz, mesmo ao telefone, se juraria dos seus gostos em matéria de género. E no
entanto, ele diz de si mesmo num maneirismo repleto de trejeitos: eu não me
assumo bicha, que querem... E jura que gosta é de mulheres. E a dizer assim, ri
como só ele sabe, a cabeça ligeiramente descaída para trás sobre o ombro
esquerdo, e a mão do mesmo lado a tapar-lhe a boca que propositadamente
escancara em demasia.
Com
que então, José Pedro tinha mesmo casado.

– Pois
que sejam felizes – diz assim em voz que outros ouviriam se ali estivessem, e
simula um brinde erguendo o copo no braço esticado para o ar da sala.
Que
aquele consórcio lhe seja fonte de penas sem medida, pensa Frederico Esteves,
como praga que rogasse, mas afasta de si esse sentimento, e emborca o copo de
um só gole, e volta a enchê-lo com Vodka ardente.
***
Maria
Teresa fez o que ele tinha pedido: quando os casares, por favor, avisa-me. E
ela telefonou-lhe.
Tinha
sido numa outra noite, e tinham jantado. Frederico Esteves chorara-lhe as
mágoas daquela paixão, e ela tinha-o aconselhado. Que não dramatizasse, dissera-lhe
a notária do alto de uns sapatos muito altos e muito encarnados. Era o seu
aniversário e, não estando reduzida à amizade de Frederico Esteves, não lhe
tinha apetecido senão ele para comemorar. Gostava daquele seu modo de ser
abichanado. Dava-lhe gozo percebe-lo sofrendo pelo lado errado. E com ela Frederico
Esteves sofria todo o seu sofrimento sem ensaios nem segredos, que Maria Teresa
tinha aquele modo especial de o fazer ficar cada vez mais sofrido, cada vez
mais um homem sem rumo e sem sentido, pequenino, perdido de si mesmo,
angustiado, e ela deleitava-se a ouvi-lo, e consolava-o exacerbando-lhe os
desgostos.
Tinham-lhe
dito que era sadismo, mas ela achava que era mais a raiva de não ter o pénis
dele, de não poder usá-lo. E detestava-o. Que ele sofresse fazia-a sentir-se num
quase orgasmo.
Fora
assim na noite dos seus quarenta e cinco anos. Frederico Esteves sofrendo pelo
amor imenso que José Pedro nutria por aquela criatura esquelética e inculta,
assim dizia ele da que seria muito em breve a esposa do seu idolatrado. Maria
Teresa apressara-se a dizer-lhe: vai casar, está confirmado. E ele chorara de
baba e de ranho.
Maria
Teresa apressara-se a contar-lhe, como se apressou, ainda há nada, a dizer-lhe
que os tinha casado.
****
– Nunca
perceberei tanto gastar de tinta, tanta discussão a interpretar o que só
poderia ter sido de um modo.
É Frederico
Esteves remoendo o artigo que acaba de ler numa página do jornal que tem
desdobrado sobre a mesa.
Está
sentado na esplanada do cafezinho onde, por um costume de anos, passa as manhãs
de domingo. Uma esplanada arrumadinha que se debruça, lá de cima, sobre o rio. Frederico
Esteves gosta de gracejar dizendo que fica ali na hora em que os amigos, os de
infância e muitos dos que ainda lhe restam, ouvem missa em alguma igreja. E
acrescenta, impertinente: eu faço a minha consagração com um café bem quente e
torradas que lambuzo em doce de cereja. Mas não diz que esse é o seu local de
leitura dos jornais semanais, que ele não lê outros, e quase só lê a secção
literária. No resto, passa os olhos nos títulos, ou saltita-os pelas linhas de uma
notícia ou outra.
– Mais
um a insistir na versão do Bentinho traído – tartamudeia Frederico Esteves olhando
o rio que o sol pintalga de reflexos inquietos.
Os
articulistas e os estudiosos da obra de Machado, preferem que a culpa tenha
sido de Capitolina. Preferem isso, a darem um sentido novo à trama urdida pelo matreirice
de mestre Assis.
Frederico
Esteves sorri-se a imaginar como poderia ter sido com Bentinho e Escobar, e vem-lhe
à memória a notícia que Maria Teresa lhe deu nem há dois dias. E nisto vai virando
as páginas dos jornais, a ler apenas as mais gordas.
E
surgem-lhe letras diferentes. Cegam-no, aquelas letras enormes, muito negras. Saltam da folha a dizerem-lhe: acidente
mata jornalista e sua jovem esposa. E os olhos de Frederico Esteves cegam-se de
lágrimas que eles já se desviaram para a linha
debaixo onde as letras gritam acima do ensurdecer que é o silêncio da esplanada: José
Pedro Reis e sua esposa mortos num brutal acidente.
Frederico
Esteves não lê os detalhes ou as pequeninas lhe diriam que o casal ia em
viagem de núpcias.
Morto seu amantíssimo José Pedro, e no entanto, não
é um soluço, e nem um choro o que lhe está acontecendo. É sim um riso, uma
gargalhada sem pejo e sem remorso. Um rir genuíno que condiz com um imenso bem
estar, enquanto as lágrimas lhe correm cara abaixo.
Morreram
os dois.
Não lhe
resta a quem tenha que dizer, insincero e cínico: que sejam felizes, e aquele ardor
no peito, e aquele despeito, e aquele horror de não ter sido com ele.
Gargalhadas
sonoras tremeluzem-lhe o peito e a garganta, saem-lhe pela boca, e o senhor da
mesa ao fundo volta-se perturbado e curioso do rapaz tão despudoradamente
hilariante.
– Boas
notícias?! – atira-lhe o homenzinho a tentar apaziguar tanta euforia.
Frederico
Esteves pede desculpas embrulhadas em gestos mudos, e decide ir embora. Afasta a cadeira evitando o ruído que seria o metal a rojar na tijoleira da esplanada: quadrados verdes e brancos, nota ele a arrumar os pertences que tem espalhados pela mesa. Ri
ainda, mas apenas no silêncio prudente do modo como coloca os olhos e a boca, e
no modo como se desloca, que parece ele que nem sente os pés fazendo pressão
para que ande, primeiro na esplanada que atravessa de uma ponta à outra, e
alguns olham, de dentro da sua pasmaceira de domingo, aquele homem tão contente: terá tido uma boa notícia, parece que pensam.
Frederico Esteves a tentar desfazer o desarranjo que possa ter causado na quietude que é suposta numa esplanada debruçada sobre o rio numa manhã de domingo. Atravessa o salão diminuto que é o cafezinho, e sai para a rua, os pés sempre naquele desatino de o fazerem ir voando, e o peito num indecoroso sentir-se com o coração leve.
Frederico Esteves a tentar desfazer o desarranjo que possa ter causado na quietude que é suposta numa esplanada debruçada sobre o rio numa manhã de domingo. Atravessa o salão diminuto que é o cafezinho, e sai para a rua, os pés sempre naquele desatino de o fazerem ir voando, e o peito num indecoroso sentir-se com o coração leve.
Frederico
Esteves num bem-estar que não podia ter previsto ao ler a notícia da morte de
José Pedro. E aceita aquele sentimento como dádiva de algum céu que ele nem sequer venera. Nunca
mais ter que os ver. Nunca mais ter que os cumprimentar. Não ter que repetir o
ardor imenso do ciúme, ou a dor incisiva da inveja que o sufocava de cada vez
que os via, de cada vez que os visse: José Pedro e a esposa no restaurante, no
cinema, em casa dos amigos que ambos frequentariam.
E
liga para Maria Teresa.
Palavras
de desgosto, é o que dizem um ao outro, e que Maria Teresa lhe encomende uma
coroa linda, pede Frederico Esteves. Que está destroçado,
ia dizer-lhe, mas contem-se, e ela jura que serão as flores mais bonitas no
cemitério, e que não desespere, que se precisar dela, a chame em qualquer
momento.
Genial! Eu juro que achei que ele ia se desesperar, e clamar aos céus por conforto, e chorar muito. Mas o que acontece? Ele ri. Ri muito. Vingativo, mau, humano. Adorei esse personagem tão real que confessa apenas para nós, leitores, o que muitos sentem nesta vida e nunca confessam a ninguém. Adorei! Mais um que eu queria ter escrito!
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