Retire o lacre
Puxe a alavanca
Empurre a janela
daí poderás entrever um pouco de liberdade
Não, não queiras muito para que não te inicies
Não vale a pena se iniciar nessas artes
Não se fores o que chamam “gente boa”, “pessoa
de bem”
Não, decididamente! Podes ficar onde estás
podes continuar a olhar pela janela intacta
Veja, a existência tem suas portas naturais
de entrada e saída
Para que desejar um escape de emergência?
Não, não te iludas achando que não sangrarás
teus pulsos
enquanto empurras a janela
Não aches mesmo que te deixarão puxar a
alavanca tranquilamente
Não, não olhes muito para a caixa, por favor.
Todavia se quiseres
Unicamente se quiseres tomar minha mão e
adentrar
Adentrar a escuridão mais tenebrosa que já
visses na vida
Se quiseres arriscar tua existência para além,
sabe,
para além de tudo quanto acreditas te valer
alguma coisa
Sim, posso ser para ti um Caronte
Não, não pasmes diante de um Estige –
não de um Estige qualquer – e sobretudo não
creias
que uma moeda ou duas me saciará a vontade e
que te levarei de barco tão logo ma dês
A vontade que tenho é de potência
há muito que já estou desse lado de cá
E me perguntam se sou “do bem” ou “do mal”,
como
nos jogos de infância
Acontece que se acabaram os jogos da infância
e não existe mais que um lado e muitas visões
Sou o que estuprou os próprios olhos
o que violou o próprio tato e todos os demais
sentidos mandou à puta que pariu a existência
Creiais, há mais do que o que vês –
há muito mais... –, e a vida não é só isso
É e um dia não É
Mas nas entrelinhas, se tiveres coragem,
se pegares minha mão, se não confiares em mim,
se não confiares em ti e em mais ninguém
E ainda assim não tiveres medo
Não te importes em rasgar teus pulsos
ou de te veres saltando dum coletivo a 120
Km/h
Se não tiveres medo de te veres saltando a 120
Km/h
E não tiveres medo de me ver te ver saltando
sem saltar
E não tiveres medo de me ver te ver saltando,
saltando junto
E não tiveres medo de me dar a tua mão
E não tiveres medo de tomar a minha
Retire o lacre
Puxe a alavanca
Empurre a janela
|Mario Filipe Cavalcanti
(Na sala da Congregação – Faculdade de Direito
do Recife, 4/11/14)
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