Quando
os meus olhos se perderem em voos sem pouso, será hora de não ficar. Mas, antes, o
deteriorar-se lento.
Primeiro,
os fracassos, se instalando gradualmente. As mãos se tornando inúteis, sem
saber para que sirvam. A boca esquecendo o mastigar. O corpo se repuxando em
reflexos descoordenados. As fraldas colhendo um descontrole indigno. Os
cabelos ralos enfeando o rosto inexpressivo. As
pernas paralisadas. O banho dado por mãos alheias. Os nomes dos filhos e dos
amigos embaralhando-se em idas e vindas cada vez mais idas. As histórias
inventadas, as assombrações à luz do dia, os afetos irreconhecíveis. Longas
horas de sono ruim. Outras tantas de olhos no teto. As mesmas frases,
repetindo-se várias vezes. Um feto encolhendo-se em involução.
Assim
será. Quando tudo em mim for cansaço e desespero, e eu me desintegrar como um
corpo estraçalhado por feras. A cada pedaço arrancado, existirei menos pessoa,
desfigurada, agonizante. A cada nesga mirrada de lucidez, invocarei um
choro. Por mim. Por vocês. Para os deuses. Mas eles não ouvirão.
Antes,
as tentativas. Comprimidos, lâminas, janelas abertas. Opções
à inexistência vegetativa. Impedidas por vocês. Como se fosse melhor
gastar o dinheiro que não têm, o tempo que não têm, o amor que não têm numa
agonia que transforma em raiva e frustração as sobras de sentimento.
Depois,
o afastamento. No quarto, nenhum de vocês culpando-se ou desculpando-se. Apenas
uma mulher estranha, sentada a um canto, cuidando de mim. Fim dos hiatos
cruéis. Da realidade escassa que aparecia para brincar de adeus. Nevoeiro. Eu
já não estarei morando em mim.
Mas
até que a impotência aconteça, há coisas bobas a cometer. Como a vida.
Escrever
no vidro embaçado das janelas de chuva. Mudar a cor do cabelo. Tomar sorvete de
pistache com castanhas. Tropeçar os olhos na lua, contar os paralelepípedos,
tomar banho gelado no verão, balançar na rede.
Como
mais tarde não haverá lembranças, quero sentir agora tudo o que ainda está em
mim. Os abraços que me devo, as madrugadas de conversas estúpidas, as viagens
desastradas com amigos imperfeitos. A melancolia dos natais e das páscoas e dos
aniversários barulhentos. As bochechas dos bebês, o rabo dos cachorros. As
comidas calóricas, a água com bolhas de gás. O chope com dois dedos de
colarinho. O uísque com quatro pedras de gelo. Quero falar sobre sexo às
gargalhadas. Fazer sexo às gargalhadas. Rezar. Pedir mais tempo para pecar
desejos inconfessáveis.
Só
então a penitência. Que será longa e minha. Incerta como os olhos perdidos em
voos sem pouso.
10 comentários:
não, não Cinthia, você não foi escrever o texto que eu imaginava e não saía e, ainda mais, este texto sofrido e, ainda mais, este texto soberbo de tão verdadeiro
Cinthia, que texto!!! Sem mais.
Foi de arrepiar, Cinthia.! Que espetáculo de texto! Só alguém com sua sensibilidade para captar a agonia-penitência da deterioração da vida, da velhice presa numa cama. Parabéns ao seu talento!
O que dizer desse texto? Mais um soco no estômago da miséria humana. Parabéns pelo talento e pela sensibilidade, Cinthia. Nem sempre eles andam juntos, mas, no seu caso, é difícil dizer qual é o mais forte.
Fátima, Denise, Cecilia e Tatiana: obrigada, amigas!
A Vida... Sofrida, Sofrível, Vivida, e, Vivas à Vida, Vivida... De uma sensibilidade fugaz, capaz, e de uma capacidade estonteante mas marcante, de Paz... Óptimo, obrigado pela partilha Cinthia Kriemler. Réjo Marpa
Belo - e forte - texto! Parabéns!
Precisei de ler segunda vez para apreciar toda a amplitude e profundidade das situações descritas. São avassaladoras as tragédias e as indignidades. “Mas até que a impotência aconteça”, continuemos. Comparadas com a intensidade das degradações, várias experiências da “continuação” parecem frouxas. Como o final. Eu apagaria o parágrafo final ou mudava-o (adaptado) para antes da “continuação”. “Pedir mais tempo para pecar desejos inconfessáveis” parece-me um bom final. E “Penitência” sugere castigo. Um “Degradação” agradava-me mais. Mas é só a minha opinião.
Obrigada, Fábio, Réjo Marpa e Joaquim! É que eu considero o Alzheimer uma penitência mesmo. Castigo. Porque ninguém merece esse tormento.
E antes que eu me esqueça:não tem nada a ver comigo, graças a Deus!
Postar um comentário