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quarta-feira, 2 de julho de 2014

SINA


 

Dagoberto descendia de uma linhagem muito especial. Desde o século XIX, quando Dagoberto Lemos de Castro batizou seu primogênito como Dagoberto Filho, uma tradição teve início naquela família: todos davam seu nome ao filho mais velho. O sobrenome da mãe sumia em meio a Dagoberto Filho, Neto, Bisneto. Quando chegou a vez da quarta geração, optou-se pela numeração, dando origem a Dagoberto Quinto, Sexto, Sétimo... Fosse por ignorância acerca da terminologia, fosse por considerar, no íntimo, que o número conferia um ar meio de realeza à família, todos, desde então, reproduziam ad eternum a sina de Dagoberto.

Tudo ia muito bem, até que a mulher do Bertinho – ou Dagoberto Lemos de Castro VII – decidiu pôr fim àquela tradição que, segundo ela, além de machista, era ridícula.

– Eu não quero nem saber dessa palhaçada! – ela esbravejava, indignada. – Filho meu não vai ter o nome do seu tataravô!

– O que é isso, Lurdinha?!  É o meu nome também...

– E o do seu pai, do seu avô, e de gente que eu nunca conheci. E é nome antigo, Berto! Eu quero um nome atual pro meu filho...Tipo Pedro, Gabriel... – ela suspirava, sonhadora.

– E desde quando nome de apóstolo é atual, Lurdinha? E Gabriel foi o anjo que anunciou a vinda de Nosso Senhor...

– Mas você vê crianças com esse nome, homem! Já Dagoberto, só você... E toda a sua família. Eu quero que meu filho seja feliz!

Os dias se passavam, e o irmão teve dois filhos. Para manter a tradição, batizou os gêmeos de Zé Roberto, e Humberto.

– Zero e um. Sorte a deles não serem trigêmeos – caçoou Lurdinha.

– E o nosso filhinho, quando vem?­­­­ pedia, esperançoso.­­

– Se depender de mim, nunca! Não quero ser a chocadeira de mais um Dagoberto pra essa ninhada. Quero que meu filho seja feliz!

Mas o destino estava do lado de Dagoberto, e a mulher descobriu-se grávida. Na tentativa de apaziguar os ânimos, ele ensaiou um trato:

– Vamos fazer o seguinte: se for uma menina, você escolhe o nome. Se for menino, quem escolhe sou eu.

– Escolhe nada: aí é mais um Dagoberto na área. Nada feito. Quero que meu filho seja feliz! – e encerrou a conversa.

 Chegou o dia do parto, e a polêmica continuava. Nem o sexo eles quiseram saber antes, para manter a paz até o nascimento da criança. Na hora de entrar no centro cirúrgico, Lurdinha ainda teimava:

– Eu não quero esse nome no meu filho! Não quero, ouviu??!!

– Tudo bem, meu amor. Mesmo que seja um menino, você escolhe o nome.

– Eu só quero que meu filho seja feliz – repetia ela, entre uma contração e outra.

– Está bem, Lurdinha. Tudo bem.

O menino nasceu lindo e saudável. Dagoberto olhava nos olhos da criança, tentando encontrar uma saída para o impasse que se criara.

No dia seguinte, Berto foi visitá-los no quarto da maternidade. A mulher e o filho ainda pareciam mais belos à meia-luz.

– Registrei nosso menino, querida! Fiz o que você me pediu. – disse ele, agitando a certidão nas mãos. A mulher olhou-o, incrédula.

– Ele não tem o meu nome, Lurdinha. Ele será Feliz...berto.

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Tatiana Alves
Tatiana Alves é poeta, contista e ensaísta. Participou de diversos concursos literários, tendo obtido vários prêmios. É colaboradora da Revista Samizdat, já tendo escrito para os sites Anjos de Prata, Cronópios, Germina Literatura e Escritoras Suicidas. É filiada à APPERJ, à Academia Cachoeirense de Letras e à AEILIJ. Possui nove livros publicados. É Doutora em Letras e leciona Língua Portuguesa e Literatura no CEFET / RJ.

todo dia 02


8 comentários:

Muito bom, Tatiana! Um impasse resolvido com uma pitada de humor, na dose certa. Um conto enxuto, em que não há falta ou excesso. Narrativa de quem conhece a fundo o ofício. Parabéns!

Tatiana, adorei! Na minha opinião o contista tem de escrever mesmo com gosta, alcançar a si antes de outrem, como ensinara o mestre Quintana, e ainda mais narrar as possibilidades, a seu modo, sem o cumprimento das prosopopeias neo-parnasianas dos críticos que insistem em "dizer como se deve escrever". E você, ao seu modo me conquistou nessa leitura. Li seu conto com um riso maroto, riso de canto de boca, um riso desrespeitoso à sina dos Dagobertos, nunca (a)bertos a novidades. Muito bom!

Obrigada, Edelson e Mário! Tenho pouquíssimos contos leves, mas gosto especialmente deste.

kkkkkkkkkkkkkkkkkkk O final me fez rir até, Tatiana! Feliz...berto! kkkkk E só encontrei seu texto porque hoje andei por aqui. Quase passei batida. Parabéns!

Obrigada, Cecília!

Só vi seu comentário hoje, acredita?
beijos e obrigada pela leitura

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