Joaquim Bispo
A
mulher esperou, encoberta, que Abílio saísse, antes de subir as escadas para o estúdio
e tocar. Lucília veio abrir, convencida de que o modelo, que já não ia para
novo, se esquecera de algo, mas não; era Judite, uma sua ex-empregada doméstica,
que ultimamente usara como modelo, e que já não via há uns quatro meses.
–
Entra, Judite – convidou, sem reparar no olhar duro da mulher. – Estava a ver
que já não me vinhas visitar.
–
Olá, Dona Lucília – respondeu Judite, fria. – O que cá me traz é do seu máximo
interesse e agradecia que me ouvisse com atenção.
–
Que se passa, Judite?, não me assustes! Senta-te.
Contornaram
uma grande tela, num cavalete a meio da divisão, em que se podia ver Abílio, de
kilt e olhar sério, meio pintado,
reclinado num sofá. No sofá verdadeiro se sentou a pintora. Judite manteve-se
de pé, em atitude decidida.
–
O que se passa, Dona Lucília, é que a senhora tem ganho bom dinheiro à minha
custa e eu continuo pobre como dantes – disparou a mulher, de olhar alterado. –
A senhora usou-me para as suas pinturas, ganhou milhares de contos
com elas, e eu não tenho sequer uma casa minha.
–
Ó, Judite – estranhou a pintora – eu não te reconheço; o que se passa?
–
Ainda bem que não me reconhece, que eu não sou a mesma. Acabou-se a boazinha
que ficava horas e horas, feita parva, em posições ridículas, a fazer de urso, ou
de galinha – que agora as pessoas até se riem – e a senhora na lua, a olhar
para anteontem. E, no fim do mês o que é que eu via? – uns reles contos a mais.
Eu já não tenho idade para continuar a trabalhar. Quero a minha reforma!
–
Reforma, como, Judite? Não sou eu que dou as reformas. Sempre fiz os descontos
a que tinhas direito. Se lá fores, lá devem estar na Segurança Social.
–
Eles dizem que ainda me faltam doze anos para pedir a reforma. Ora, eu não
aguento mais. Eu vou ser muito direta, Dona Lucília; ou a senhora me dá vinte mil contos por estes dias, ou o patrão vai ficar a saber que a senhora anda enrolada
com o Abílio. Tenho os mails todos,
sabe? Tanto os que a senhora envia, como os que recebe. Levei a password da sua caixa de correio e fiz
cópias de ecrã de todos. Agora, a senhora escolha; quer continuar a sua boa
vida de sonsa, com menos uns trocos, ou quer ver como acaba o seu casamento?
–
Eu não te mereço isto, Judite! Como podes? – desapontava-se Lucília. – Depois
de tudo o que fiz por ti, que eras uma rústica… E que história é essa do
Abílio? Enrolada? Tu não estás bem. O Abílio é um bom amigo e um bom modelo,
tal qual como tu. Só isso!
–
Sim, sim! Pensa que eu não via o seu olhar a lambê-lo de alto a baixo? Depois,
quando li os mails, descobri tudo.
Agora está tramada, minha santa!
–
Estás louca, mulher! Nunca hás de perceber um artista. O pintor olha, com olhos
de ver. Mira, sim, completa e exaustivamente o corpo do seu modelo. Conhece-lhe
cada centímetro, melhor que ele próprio. E, às vezes, perturba-se, que a
intimidade a tanto chega! Sempre se falou da relação ambígua entre pintores e
modelos: já ouviste falar em Balthus? Às vezes, mais explícita que ambígua –
Rodin, Toulouse-Lautrec… Mas isso, que te interessa!?; pareceu-te ver luxúria
onde havia apreensão estética. E isso dos mails,
nem quero tentar perceber que bizarros enredos de alcova engendraste. Só te
digo que leste mal. E a desfaçatez de entrares na minha caixa de correio. Que cabra me saíste!
–
Não adianta negar, Dona. O Senhor Jorge vai perceber muito bem o que lá está
escrito. Por isso, pense bem.
–
Não percebes nada, mulher! – impacientava-se a artista. – Vieste lá das berças
e pensas que este mundo tem alguma coisa que ver com o teu. Isto não é um
romance do Eça de Queiroz. Aqui não há primos sabidos, nem eu sou uma cândida
esposa imatura. Convence-te, Judite, o mundo dos artistas é mais solto, mais
liberal. Também não gostamos de ser preteridos, às vezes choramos, mas não
entendemos os maridos e as mulheres como propriedade, nem lhes limitamos
demasiado a liberdade. Mas sempre com transparência. Já estive com outros
homens, sim, mas o Jorge foi sempre o primeiro a saber. E ele também já teve os
seus arrebatamentos. Chegou a viver lá em casa uma de quem ele gostava muito.
Depois de algum tempo, como eu previa, acabou-se a chama, e ela foi-se embora.
Não ando com o meu modelo, mas se andasse, o Jorge estaria ao corrente.
Percebes, Judite? Agora, vai-te embora, que não me apetece olhar para ti.
Antes
de sair e bater com a porta, Judite, visivelmente confusa, ainda articulou, sem
convicção:
–
Se é assim que quer, assim terá! Vaca!
Dois
dias depois, Judite voltou.
–
Que queres, Judite? – perguntou Lucília, segurando a porta, ao ver o olhar
injetado da outra.
Esta
empurrou Lucília e entrou, fechando a porta sem olhar para trás. Depois,
retirou da malinha uma faca de cozinha e apontou-a à ex-patroa:
–
Não te vais livrar assim! Deste-me a volta, deram-me a volta, cambada de
badalhocos, mas eu não vou desistir. Se não dás a bem, dás a mal – vociferava a
ex-chantagista convertida à extorsão.
A
pintora hesitou por um momento, ao ver a faca no braço em riste da outra.
Depois, recuou calmamente, de olhar perscrutador. Quem a visse a avaliar a
agressora, não demonstrando medo, antes curiosidade, suspeitaria de alguma
quebra momentânea de siso, provocada pela situação traumática. Também Judite
pareceu surpreendida com a reação da ex-patroa. Mantinha-se parada a três
passos de Lucília, faca levantada, atitude expectante. Foi a pintora que
quebrou a rigidez da composição:
–
Judite, escuta, se me agredires, estragas a tua vida. Vais presa, deixas de
estar com o teu filho. Deves estar desesperada para fazer isto. Posso
ajudar-te, mas não da maneira que dizes.
–
Quero o meu dinheiro! – insistia Judite.
–
Ouve, estou-te reconhecida pelos trabalhos que fizeste para mim, não o esqueço.
As minhas pinturas vendem-se por muito dinheiro? Nem sempre foi assim. Mesmo
então, cumpri o combinado com os meus modelos; paguei sempre no dia certo, não
foi? Também um construtor vende os prédios por muito dinheiro, e não é por isso
que o pedreiro muda de carro. Às vezes, lá tem um prémio pelo Natal. Queres
comparticipação? Vamos fazer o seguinte: posas para mim com essa faca, nessa
atitude. Interioriza-a bem: zangada, ressentida, vingativa. Gostei da imagem, é
forte. Acho que dá para uma nova série de pastéis. Pago-te o mesmo que te
pagava, mas, além disso, quando as obras se venderem, recebes uns três por
cento do que eu receber. Parece-te bem?
Judite
estava confusa e indecisa. Tentava calcular quantos contos representariam três por
cento de, talvez, duzentos mil euros, depois de deduzida a parte da galeria.
Nesse momento, ouviu-se uma chave a rodar na fechadura e Abílio entrou.
Surpreendido por ver Judite de faca na mão e face afogueada, indagou, em
prontidão:
–
Há algum problema?
–
Não, Abílio, entra! – contemporizou a pintora. – A Judite veio outra vez
visitar-me e combinámos uma nova série de telas com anjos justiceiros femininos
– uma mistura de Arcanjo São Miguel e empregada doméstica: numa mão, a espada;
na outra, o pano do pó. Vou-me rir com as interpretações que a crítica vai fazer.
Paula
Rego, Anjo, 1998
(Este conto obteve uma menção
honrosa na edição de 2013 do Concurso Internacional de Contos Cidade de
Araçatuba, categoria internacional.)
5 comentários:
Muito bom! Faz o meu género.
Leve e inesperado. Por um momento ou dois achei que ia ter tragédia. Mas a coisa foi para o lado da inteligência. Parabéns pela menção honrosa.
Obrigado, Ana e Cinthia!
Eheheheheheheh!!!!!! 3%!!!!!!!! Inesperado!!!!!!!! Fui apanhada!
Gosto de o vêr no seu elemento meu preferido. Dramático e divertido. Gostaria também que pudesse de dentro conhecer o meu. Parabéns.
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