...(sic). Um
“oh” em uníssono. Foi trágico, e inexplicável. Pelos degraus que separavam os
letrados do grande público, escorria um filete de sangue, em forma de “s”... E
a vítima, cuja essência “desconhecida e obscura” intrigava os mais íntimos,
fora prontamente removida, numa tentativa desesperada de socorro. A FLIP
daquele ano seria interrompida, talvez suspensa por tempo indeterminado, até
que aquele trauma fosse superado. O curador do evento, ao presenciar a reação
do público presente, tentava, em vão, manter o controle pelo microfone. Do lado
de fora, revoltosos apedrejavam o telão da Tenda Matriz. Lá dentro ainda se
encontrava o criminoso... Para evitar que a lei de Talião fosse a lei imperiosa
no recinto, os guardas protegiam, em cerco, o autor daquele crime bárbaro.
Paulo Coelho deixou a bancada, envolto em sua comum aura de mistério. Logo é
abordado por um ávido repórter. “Paulo, antes desse acontecimento, você vinha
sendo o alvo de todos aqui na FLIP, as pessoas ameaçavam deixar o evento caso
você viesse a palestrar... E agora esse cenário muda da água pro vinho, como
você analisa tudo isso?” “Maktub, meu
camarada, maktub... Mas, como já diz
aquela frase de Facebook, que por sinal é de minha autoria, ‘Deus dá sempre uma
segunda chance na vida’”.
Um representante
dos Direitos Humanos tenta controlar a multidão enfurecida. “Acalmem-se! Errar
é humano! Quem nunca errou na vida, que atire a primeira pedra!”. E atiraram
livros. Um Aurélio quebrou o nariz do sujeito que, no calor do momento, mandou
que todos fizessem um uso dolorido do ânus. Mais tarde, seria demitido pelo
chefe, Feliciano...
Aquele senhor
de idade, quase centenário, como pôde? Teria sido um ato de insanidade? Caso
psiquiátrico? Suas justificativas eram infundadas. Um senhor respeitadíssimo
pela comunidade acadêmica, membro da ABL, perde toda sua reputação após ter
cometido o crime mais absurdo que lhe cabia. Pelas redes sociais, aquela
notícia se alastrou impiedosamente. O aplicativo Criminal Case adicionou o caso “FLIP 2013”. Fotos (do Instragram,
claro) eram postadas com a obra do referido autor tendo suas páginas picotadas,
ou simplesmente queimadas. A Avenida Presidente Wilson, no Rio de Janeiro,
estava tomada por indignados manifestantes. Em frente à Academia Brasileira de
Letras, erguiam cartazes com dizeres enfáticos, tais quais “Sauve a ultima Flor
do Lassio” “Fora, assassino!” “Limpeza na ABL!”, “Desocupe a cadeira, seu
burro!”, “Reformulem os livros didáticos!”. Diante das constantes
manifestações, as quais atingiam até mesmo outros imortais, Ana Maria Machado
providenciou uma audiência pública na Cinelândia. Em um enorme palanque (mais
tarde haveria show do Naldo), a presidenta da ABL apresentou o réu, o qual fora
assuado pela grande massa.
– Ecce homo!... Um homem que já contribuiu
muitíssimo pela formatação da nossa Língua Portuguesa!
Logo abaixo do palanque, um linguista metido a
besta exclama, pelo alto-falante:
– Um homem que
amarga o passado e desconhece o biologismo linguístico! Um péssimo exemplo para
os falantes! Um velho que agora prova do próprio veneno! Abaixo a norma culta!
E todo o povo
mandou a norma culta pra cucuia. Ana Maria, observando a situação delicada que
seu mentor acadêmico se encontrava, convida a entrada de José Sarney e FHC,
também atacados pelos manifestantes:
– Zé Sarney, o
homem que, em seu governo, provocou a maior inflação que este país já viveu;
que já foi acusado de tramoia no Senado e que escreveu “Brejal dos Guajas”, as
50 páginas mais traumáticas que já li em toda minha vida.
FHC, antes de
ser apresentado, toma o microfone:
– Com licença,
presidenta, todos me conhecem, dispensemos este ritual. Quero aproveitar o
ensejo para lançar mão de um projeto que tornará o Brasil o país-referência da
literatura: a legalização e viabilização da maconha para todos os escritores
deste país. A maconha eleva a inteligência humana! Tenho dito!
Muito
aplaudido, FHC devolve o microfone à intermediadora.
– A voz do
povo é a voz de Deus... Apenas um membro poderá desocupar a cadeira da ABL
nesta ocasião... Quem vocês acham que deve abrir mão da Academia?
Não tinha
perdão. O assassino da FLIP, como ficou conhecido, fora crucificado pelo povo.
De quebra, os manifestantes exigiram que Bruna Surfistinha assumisse o posto do
morto-vivo, sob os gritos de “abaixo o purismo”. Condenado também
judicialmente, por ato culposo, ou seja, acidental, o gramático seria exilado
para o Acre (?), tendo de viver em reclusão, durante três meses, com a cantora
Vanusa.
Aquele crime
foi comentado algum tempo, sem um esclarecimento plausível. Meses depois, o
regenerado purista foi visto e fotografado no Mc’ Donald com os linguistas
Celso Luft e Marcos Bagno. Aquela cena intrigou o Brasil, ou, melhor dizendo, o
Brasil que se interessa por esses assuntos. A mídia (TV Cultura, TVE Brasil, Cine
Brasil TV) não cessava as interpelações. Convidado para o programa Roda Viva –
aquele senhor, aparentemente inofensivo – se viu atordoado diante de tanta
gente enchendo o saco.
“Senhor
Evanildo Bechara... Considerando que, em vias naturais, isso seria impossível,
o que motivou o senhor a assassinar a gramática na FLIP deste ano?”
“Caríssimo
ex-gramático, por que se reuniu com seus maiores inimigos?”
“Pessoas
cultas frequentando o Mc’ Donald significaria uma tentativa de despistar os
jornalistas e intelectuais?”
“Perdoe
a ousadia, mas o senhor caducou ou virou índio?”
A
verdade, por trás das cortinas daquele crime, jamais poderia ser revelada. Tudo
fazia parte de um plano superior. “Um pacto inquebrantável” entre os maiores
conhecedores da língua portuguesa. Bechara lembrou-se da hora que antecedeu a
sua palestra na FLIP... Tudo aconteceu numa sala obscura, de uma biblioteca...
O encontro, a ameaça... E o ponto final naquela rusga secular entre puristas e
linguistas.
Ao
ter sido perguntado sobre o que faria no futuro (embora já estivesse com um pé
e meio na cova), concedeu uma resposta que soterrou qualquer tipo de perseguição.
–
Vou me candidatar à presidência da República. Por que não? Se o Lula, que diz
ter nascido analfabeto, se tornou o presidente mais célebre do Brasil, por que
não eu? Se o Renan Calheiros, que já desviou dinheiro, falsificou documentos e
ainda se tornou o presidente do Senado, por que não eu? O povo brasileiro tá
acostumado a ter ídolos às avessas. Que assim seje”.
0 comentários:
Postar um comentário