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quarta-feira, 28 de maio de 2014

Onde a lentidão tem vez

Com a memória cada vez mais lenta, vamos ver se consigo relembrar uma historinha que li em algum lugar. Uns pesquisadores precisavam chegar a determinado lugar da floresta. O caminho só os índios conheciam. Lá foram os índios guiar os pesquisadores. Mas os pesquisadores tinham pressa e os índios tiveram de se apressar para poder acompanhá-los. Até que, chegados a certo ponto da caminhada, os índios se recusaram a seguir caminho. Indagados do motivo, responderam que suas almas tinham ficado para trás. Só quando suas almas os alcançassem de novo é que continuariam a jornada.

Talvez essa historinha explique por que andamos tão desarvorados, desorientados: tangidos pela pressa, deixamos nossa alma errando pelo caminho.

Apesar da velocidade da máquina do mundo, há espaços em que a lentidão tem vez. Desconfio que a arte, qualquer arte, é o lugar por excelência da lentidão. Para além do domínio da arte, penso, por exemplo, na gestação. A lentidão que é própria do ato de gestar dá origem à maravilha que é uma vida. Penso, também, na meditação, que é a lentidão que se cava em meio à pressa do mundo. E o que parece um voltar-se para dentro resulta na maravilha da expansão da consciência de si e do mundo. Penso, por fim, no tempo da infância que, embora passe tão depressa, é vivido com a lentidão própria das descobertas. Ninguém é capaz de imaginar os mundos que habitam uma criança entregue à quietude, à lentidão. Para designar esse mundo em construção, nada melhor do que relembrar esta frase do Rosa: “Quando nada está acontecendo, há um milagre que não estamos vendo”. Tudo porque a criança ainda está a salvo da máquina do mundo – que tem na pressa um de seus motores.

Falei na arte como espaço da lentidão. Não sendo possível falar de todas as artes, gostaria de relacionar duas artes importantíssimas: uma responde pelo nosso sustento físico; a outra, pelo nosso sustento metafísico. Trata-se da arte culinária e da arte literária. Claro que se pode cozinhar depressa e escrever text-foods. Mas aí não se está sob o domínio da arte e o resultado é uma comida e um texto pouco saborosos, pouco nutritivos.

A arte de cozinhar começa muito antes de se ir para o fogão. Primeiro se aciona a memória gustativa: o que eu gostaria de comer hoje? Depois se vai em busca dos ingredientes. No universo da cozinha tudo tem seu tempo. Não se apressa o ponto de cozimento de um legume sem se alterar, para pior, seu sabor. Na cozinha, o melhor vem sempre de obedecer aos compassos da lentidão.

O mesmo acontece na arte de escrever – que começa muito antes de se ir para o papel. Primeiro se aciona a memória afetiva: sobre quê eu gostaria de escrever hoje? Depois se vai anotando palavras e frases – os fios com que vamos bordar o texto. No universo da escrita reina o imperativo da lentidão. Não se apressa a feitura de um texto sem se comprometer sua textura. Na escrita, a lentidão é que dá o compasso: ora mais lento, ora menos lento – mas sempre lento.

Viver também devia seguir o mesmo compasso – e seguiu por muito tempo. Desde que a espécie humana evoluiu de homo sapiens para homo zappiens, a pressa dá o tom do viver: vive-se tudo ao mesmo tempo agora. Vestidos de homo zappiens, acreditamos que viver sob o compasso da pressa é viver mais. Esquecemo-nos de que a vida que mais vale é a que se vive no colo da lentidão. É a lentidão que faz o vivido melhor se sedimentar em nós. Não é à toa que o tempo da infância floresce no chão da memória com tanta força. É um tempo inteiramente vivido (não sei se isso vale para as crianças de hoje) de mãos dadas com a lentidão. E não à toa se diz que a criança é o pai do homem. Se assim é, e eu acredito nisso, somos todos filhos da lentidão. E andamos meio órfãos dela.  

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2 comentários:

Muito querido Tarlei,
Continue no colo da lentidão...vc tem feito belos bordados, costuras literárias de tocar o coração.... gostei MUITO dessa reflexão... ela chama o leitor, coloca-o no colo e fala, fala, .... direto ao coração. beijos procê. inté.

Minha querida Edna,
nada como desfrutar do colo da generosidade amiga. Muito obrigado pelo comentário!
Bjs,
Tarlei

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