Com a memória cada vez mais lenta, vamos ver se consigo relembrar uma historinha que li em algum lugar. Uns
pesquisadores precisavam chegar a determinado lugar da floresta. O caminho só
os índios conheciam. Lá foram os índios guiar os pesquisadores. Mas os
pesquisadores tinham pressa e os índios tiveram de se apressar para poder acompanhá-los.
Até que, chegados a certo ponto da caminhada, os índios se recusaram a seguir
caminho. Indagados do motivo, responderam que suas almas tinham ficado para
trás. Só quando suas almas os alcançassem de novo é que continuariam a jornada.
Talvez essa historinha
explique por que andamos tão desarvorados, desorientados: tangidos pela pressa,
deixamos nossa alma errando pelo caminho.
Apesar da velocidade
da máquina do mundo, há espaços em que a lentidão tem vez. Desconfio que a
arte, qualquer arte, é o lugar por excelência da lentidão. Para além do domínio
da arte, penso, por exemplo, na gestação. A lentidão que é própria do ato de
gestar dá origem à maravilha que é uma vida. Penso, também, na meditação, que é
a lentidão que se cava em meio à pressa do mundo. E o que parece um voltar-se para dentro resulta na maravilha da expansão da consciência de si e do mundo. Penso, por
fim, no tempo da infância que, embora passe tão depressa, é vivido com a
lentidão própria das descobertas. Ninguém é capaz de imaginar os mundos que
habitam uma criança entregue à quietude, à lentidão. Para designar esse mundo
em construção, nada melhor do que relembrar esta frase do Rosa: “Quando nada
está acontecendo, há um milagre que não estamos vendo”. Tudo porque a criança
ainda está a salvo da máquina do mundo – que tem na pressa um de seus motores.
Falei na arte como
espaço da lentidão. Não sendo possível falar de todas as artes, gostaria de
relacionar duas artes importantíssimas: uma responde pelo nosso sustento
físico; a outra, pelo nosso sustento metafísico. Trata-se da arte culinária e
da arte literária. Claro que se pode cozinhar depressa e escrever text-foods. Mas aí não se está sob o
domínio da arte e o resultado é uma comida e um texto pouco saborosos, pouco
nutritivos.
A arte de cozinhar
começa muito antes de se ir para o fogão. Primeiro se aciona a memória
gustativa: o que eu gostaria de comer hoje? Depois se vai em busca dos
ingredientes. No universo da cozinha tudo tem seu tempo. Não se apressa o ponto
de cozimento de um legume sem se alterar, para pior, seu sabor. Na cozinha, o
melhor vem sempre de obedecer aos compassos da lentidão.
O mesmo acontece na
arte de escrever – que começa muito antes de se ir para o papel. Primeiro se
aciona a memória afetiva: sobre quê eu gostaria de escrever hoje? Depois se vai
anotando palavras e frases – os fios com que vamos bordar o texto. No universo
da escrita reina o imperativo da lentidão. Não se apressa a feitura de um texto
sem se comprometer sua textura. Na escrita, a lentidão é que dá o compasso: ora
mais lento, ora menos lento – mas sempre lento.
Viver também devia seguir
o mesmo compasso – e seguiu por muito tempo. Desde que a espécie humana evoluiu
de homo sapiens para homo zappiens, a pressa dá o tom do
viver: vive-se tudo ao mesmo tempo agora. Vestidos de homo zappiens, acreditamos que viver sob o compasso da pressa é
viver mais. Esquecemo-nos de que a vida que mais vale é a que se vive no colo
da lentidão. É a lentidão que faz o vivido melhor se sedimentar em nós. Não é à
toa que o tempo da infância floresce no chão da memória com tanta força. É um tempo
inteiramente vivido (não sei se isso vale para as crianças de hoje) de mãos
dadas com a lentidão. E não à toa se diz que a criança é o pai do homem. Se
assim é, e eu acredito nisso, somos todos filhos da lentidão. E andamos meio
órfãos dela.
2 comentários:
Muito querido Tarlei,
Continue no colo da lentidão...vc tem feito belos bordados, costuras literárias de tocar o coração.... gostei MUITO dessa reflexão... ela chama o leitor, coloca-o no colo e fala, fala, .... direto ao coração. beijos procê. inté.
Minha querida Edna,
nada como desfrutar do colo da generosidade amiga. Muito obrigado pelo comentário!
Bjs,
Tarlei
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