O Grito de Vicente


(Ao som de Confutatis Maledictis, do Réquiem de Mozart)


Vicente era

Vicente era mudo. Era como se todo o seu corpo fosse nulo.
Vicente era coveiro. Mudo e invisível, não recebia acenos, apertos de mão, nada. Com seu uniforme cinza caminhava por todo o cemitério como um fantasma.
Vicente era mudo. Não era surdo, não era cego. Às vezes, se fazia de aleijado, apenas para ser visto. Mas, ali, só lamentos e rezas.
Vicente era coveiro. Sua função era preparar a terra para receber o corpo.
Vicente era mudo. Não tinha voz. Não era nada.


Vicente viu

Vicente viu um anjo. O corpo dele era pequeno, mas dominava o olhar das pessoas.
Vicente viu a morte. Entre flores e ramos e arranjos e faixas de saudade, viu círios compridos de dor.
Vicente viu um anjo. Ele não voava, não sorria, não chorava nem gemia. Esse anjo dormia.
Vicente viu a morte. E preparou a terra para saudar o fim de uma criança.
Vicente viu um anjo. Corpo frágil e leve que já não brinca.


Vicente cavou

Vicente cavou a terra. Misturava o suor à escuridão do pó. A garoa caía fina e áspera no rosto.
Vicente cavou passados. A terra úmida cheirava a mortes. Entre ossos cavou.
Vicente cavou a terra. Ela se abria sem resistência. Ansiosa, esperava mais.
Vicente cavou passados. Sentia as dores do que já ultrapassou o éter.
Vicente cavou a terra. Preparou o caminho para o além da criança.


Vicente gritou

Vicente gritou adeus. Cavando a terra, abriu o ventre do impronunciável. Desenterrou seu corpo morto do pó lamacento.
Vicente gritou de espanto. Seu rosto cinza, corroído por vermes, brotava lentamente da terra fofa.
Vicente gritou adeus. Braços e pernas o abraçavam. Abraçava-se apenas, sendo o nó do revelado.
Vicente gritou de espanto. Fechou os olhos com terror, mas sem tristeza. Não havia lembranças, então deitou-se.
Vicente gritou adeus.


Este conto integra o livro Sísifo Desatento, que será publicado em maio deste ano, pela editora Terracota.




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