Maria de Fátima
adaptado de um escrito de Maio de 2007
desenho de 2003
desenho de 2003
Se falássemos as palavras todas, as que sabemos e as que ninguém
escreveu ou disse ou se formaram ainda destas letras ou de outros abecedários.
Se falássemos ou escrevêssemos com tantas dessas letras
misturadas, podiam os cachorros ser filhos de zebras e andarem fadas pintando
casas com velas de cera ardidas em pavios de cabelos.
Cabelos negros de princesas penteando-se à luz das velas.
Podiam andar pastores apascentando o gado em supermercados e, nas
horas de ponta, haver, no meio das filas de carros, anjos e demónios lutando
pelo melhor modo de tentar o condutor do lado.
Se falássemos com todas as palavras que há para falar, e as demais
que não sabemos, e ninguém sabe, podíamos trocar a vida por um sonho. Um ou
mais. E andarmos nus pelas esquinas, a taparmos o frio com pétalas de flores.
Podíamos nem inventar tamanhos desconcertos, e ficarmos apenas com
as letras, todas as letras de todos os abecedários, passeando de mãos dadas por
estrelas e planetas e o mais que nem imaginamos.
Us alados movidos a uma energia fornecida
pelos ás a rodar, vertiginosos, nas dobras dos agás.
Levar os bês por companhia em noites longas de insónia,
e ir atravessando o espaço para aportar muito, lá muito longe, onde haveria um
abecedário desarrumado de todos os falares, de todos os escreveres, e sequer
dos apenas pensados.
Levar pela mão um ene de caligrafia, e dormir com a
cabeça encostada num ó e os pés tapados com as dobras de
um zê pequeno escrito com caneta de aparo.
Se falássemos as palavras todas, se as misturássemos a eito,
poderíamos fazer aparecer um palhaço de dentro do rebuçado de mel que a mãe nos
deu para aquela dor no peito, e brincar de escondidas com um éme grande em cima
da tampa do fervedor do leite. E enquanto assim fizéssemos, podiam dançar na
cozinha as ervilhas em traje de fantasia. As ervilhas entretidas e a gente a
vê-las através das letras baralhadas que, mesmo depois de as unir em palavras,
elas saltam sem pudor e erram pelo sítio da escrita ou do dizer. Contam
histórias, inventam mundos, endoidam-nos. Se as deixamos, elas parecem cavalinhos
mal paridos, tontos, correndo em desfilada pela pradaria.
As palavras voam, desabridas.
Era uma vez uma cigarra com as asas feitas de um tecido tão fino e
transparente que parecia, a quem a visse, que ela voava sem as ter. Umas asas
muito, mas mesmo muito finas, e eram também desse modo as vestes: deixavam ver
o que lhe estava dentro. E não era uma cigarra, mas eram três cigarras e
cantavam em cima dum palco. Três cigarras tão transparentes que nem eram olhos
que as viam, era outro o modo delas serem olhadas, e estavam, todas três, uma
tocando guitarra, outra tocando flauta e outra clarinete. E cantavam para uma
sala cheia.
Se deixamos, as letras embaralham-se em palavras e rolam doidas e,
nem damos por isso, lá vai a história que diz que, na mesa da frente está
sentado um sapo vestido com calças de ganga e um blusão preto sobre a pele
muito verde. Ao lado, com as pernas esticadas porque não as consegue colocar
por debaixo da mesa, está uma girafa ainda menina com a cabeça cheia de
caracóis e madeixas cor-de-rosa. Veste uma saia preta bordada com flores
vermelhas, e tem umas meias roxas, a mesma cor da túnica com manchas amarelas
por cima da qual veste, abafando, um blusão de ganga de um azul roçado. Uma
girafa com uns olhos muito verdes pestanejantes, a fazer denguices ao sapo.
Chama-se Giriquella – com dois lês como ela gosta de emendar – e está
apaixonada pelo Kari, o sapo, sócio, no negócio do bar, do pato ganso vestido
de rosa choque que vemos lá ao fundo, encostado, mirando a sala de copo de
genebra na mão. Bebe sempre genebra num copo de vidro azul metálico.
– Vidro das ilhas do mar adriático, gosta de frisar.
O silêncio quebra-se. São as cigarras cujo trio dá pelo nome
de Nrafiju. Dizem que o nome é em memória de um tio da cigarra mais
nova. Uma história de morte por overdose com sumo de um fruto. O nrafiju.
Fruto selvagem trazido duma zona do oceano formada quando se afundou o velho
continente, região inóspita, mas de extrema beleza que, a pouco e pouco
desapareceu nas águas. Ao que consta, o tal Nrafiju fez parte de uma leva
de pioneiros enviados por um governo de raposas prateadas, ao tempo no poder,
para repovoar de peixes os fundos desabitados da enorme cratera que se ia, a
pouco e pouco, enchendo de água. Um peixe de enormes guelras azuis e escamas
de um doirado fulgurante, esse tio das cigarras. Uma cigarra velha, enxertada
em peixe, que nem só uma árvore pode ser, hoje, damasqueiro e ter, amanhã, os
ramos cobertos de romãs.
Fossemos querer que as letras tivessem os sons que conhecemos, e
não podíamos ler o nome do ganso. Kkk, sabe-o pronunciar cada um dos que entra
no bar, e sabe-o o burro que chama o ganso para mais uma rodada na mesa onde se
senta com galinhas pretas e duas pedreses anafadas. O burro erguendo uma das
patas traseiras e mostrando a dentadura:
– Kkk – chama.
Contar histórias.
Deixar saltar as letras. Brincar com as palavras. Deixar que elas
se permitam brincar com a gente. Baralhá-las. Ainda que nem
conhecendo todas as palavras, ainda que nem sabendo todos os alfabetos.
2 comentários:
Por aqui nem clareou e dou com esse turbilhão de luzes que é o teu conto
e quase me apaixono pelo sapo que invejo a genebra no copo azul de Murano
por aqui ainda é escuro
deito mais um pouco ainda com o sabor das tuas letras misturadas
obrigada Fátima
agora cuido em cobrir os pés com as dobras em zê
lindo pensar que a gente pode andar assim, no colo de outro com as letras...milagres delas, Li, milagre da net também
te agradeço muito
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