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quinta-feira, 15 de maio de 2014

diversão


Maria de Fátima
adaptado de um escrito de Maio de 2007
desenho de  2003



Se falássemos as palavras todas, as que sabemos e as que ninguém escreveu ou disse ou se formaram ainda destas letras ou de outros abecedários.
Se falássemos ou escrevêssemos com tantas dessas letras misturadas, podiam os cachorros ser filhos de zebras e andarem fadas pintando casas com velas de cera ardidas em pavios de cabelos.
Cabelos negros de princesas penteando-se à luz das velas.
Podiam andar pastores apascentando o gado em supermercados e, nas horas de ponta, haver, no meio das filas de carros, anjos e demónios lutando pelo melhor modo de tentar o condutor do lado.
Se falássemos com todas as palavras que há para falar, e as demais que não sabemos, e ninguém sabe, podíamos trocar a vida por um sonho. Um ou mais. E andarmos nus pelas esquinas, a taparmos o frio com pétalas de flores.
Podíamos nem inventar tamanhos desconcertos, e ficarmos apenas com as letras, todas as letras de todos os abecedários, passeando de mãos dadas por estrelas e planetas e o mais que nem imaginamos.
Us alados movidos a uma energia fornecida pelos ás a rodar, vertiginosos, nas dobras dos agás. 
Levar os bês por companhia em noites longas de insónia, e ir atravessando o espaço para aportar muito, lá muito longe, onde haveria um abecedário desarrumado de todos os falares, de todos os escreveres, e sequer dos apenas pensados.
Levar pela mão um ene de caligrafia, e dormir com a cabeça encostada num ó e os pés tapados com as dobras de um zê pequeno escrito com caneta de aparo.
Se falássemos as palavras todas, se as misturássemos a eito, poderíamos fazer aparecer um palhaço de dentro do rebuçado de mel que a mãe nos deu para aquela dor no peito, e brincar de escondidas com um éme grande em cima da tampa do fervedor do leite. E enquanto assim fizéssemos, podiam dançar na cozinha as ervilhas em traje de fantasia. As ervilhas entretidas e a gente a vê-las através das letras baralhadas que, mesmo depois de as unir em palavras, elas saltam sem pudor e erram pelo sítio da escrita ou do dizer. Contam histórias, inventam mundos, endoidam-nos. Se as deixamos, elas parecem cavalinhos mal paridos, tontos, correndo em desfilada pela pradaria.
As palavras voam, desabridas.
Era uma vez uma cigarra com as asas feitas de um tecido tão fino e transparente que parecia, a quem a visse, que ela voava sem as ter. Umas asas muito, mas mesmo muito finas, e eram também desse modo as vestes: deixavam ver o que lhe estava dentro. E não era uma cigarra, mas eram três cigarras e cantavam em cima dum palco. Três cigarras tão transparentes que nem eram olhos que as viam, era outro o modo delas serem olhadas, e estavam, todas três, uma tocando guitarra, outra tocando flauta e outra clarinete. E cantavam para uma sala cheia.
Se deixamos, as letras embaralham-se em palavras e rolam doidas e, nem damos por isso, lá vai a história que diz que, na mesa da frente está sentado um sapo vestido com calças de ganga e um blusão preto sobre a pele muito verde. Ao lado, com as pernas esticadas porque não as consegue colocar por debaixo da mesa, está uma girafa ainda menina com a cabeça cheia de caracóis e madeixas cor-de-rosa. Veste uma saia preta bordada com flores vermelhas, e tem umas meias roxas, a mesma cor da túnica com manchas amarelas por cima da qual veste, abafando, um blusão de ganga de um azul roçado. Uma girafa com uns olhos muito verdes pestanejantes, a fazer denguices ao sapo. Chama-se Giriquella – com dois lês como ela gosta de emendar – e está apaixonada pelo Kari, o sapo, sócio, no negócio do bar, do pato ganso vestido de rosa choque que vemos lá ao fundo, encostado, mirando a sala de copo de genebra na mão. Bebe sempre genebra num copo de vidro azul metálico.
– Vidro das ilhas do mar adriático, gosta de frisar.
O silêncio quebra-se. São as cigarras cujo trio dá pelo nome de Nrafiju. Dizem que o nome é em memória de um tio da cigarra mais nova. Uma história de morte por overdose com sumo de um fruto. O nrafiju. Fruto selvagem trazido duma zona do oceano formada quando se afundou o velho continente, região inóspita, mas de extrema beleza que, a pouco e pouco desapareceu nas águas. Ao que consta, o tal Nrafiju fez parte de uma leva de pioneiros enviados por um governo de raposas prateadas, ao tempo no poder, para repovoar de peixes os fundos desabitados da enorme cratera que se ia, a pouco e pouco, enchendo de água. Um peixe de enormes guelras azuis e escamas de um doirado fulgurante, esse tio das cigarras. Uma cigarra velha, enxertada em peixe, que nem só uma árvore pode ser, hoje, damasqueiro e ter, amanhã, os ramos cobertos de romãs. 
Fossemos querer que as letras tivessem os sons que conhecemos, e não podíamos ler o nome do ganso. Kkk, sabe-o pronunciar cada um dos que entra no bar, e sabe-o o burro que chama o ganso para mais uma rodada na mesa onde se senta com galinhas pretas e duas pedreses anafadas. O burro erguendo uma das patas traseiras e mostrando a dentadura:
– Kkk – chama.

Contar histórias.
Deixar saltar as letras. Brincar com as palavras. Deixar que elas se permitam brincar com a gente.  Baralhá-las. Ainda que nem conhecendo todas as palavras, ainda que nem sabendo todos os alfabetos.

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2 comentários:

Por aqui nem clareou e dou com esse turbilhão de luzes que é o teu conto
e quase me apaixono pelo sapo que invejo a genebra no copo azul de Murano
por aqui ainda é escuro
deito mais um pouco ainda com o sabor das tuas letras misturadas
obrigada Fátima

agora cuido em cobrir os pés com as dobras em zê

lindo pensar que a gente pode andar assim, no colo de outro com as letras...milagres delas, Li, milagre da net também
te agradeço muito

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