Um fato curioso, no entanto, chamou a atenção dos locais: nem crianças, nem animais eram levados pela morte. A notícia cresceu mais do que a fome da praga, estimulando conjecturas e certezas.
— Isso é coisa da justiça divina! — garantiam os mais tementes.
— Ou é arte do Tinhoso... — desafiavam os mais ousados.
Mas nada os convencia de um motivo sem retoques. Enquanto isso, ao fim de cada dia, nunca menos que três ou quatro mortos eram preparados para o solo santo.
Morava na cidade um certo Padre Baptisto, que aparecera pelas redondezas havia tantos anos que nem mesmo os habitantes mais antigos eram capazes de precisar a data de sua chegada. Viera para ser vigário, mas, homem de muita meditação e pouca pregação, durou pouco tempo à frente da paróquia. Os fiéis, necessitados de palavras que os perdoassem dos pecados revelados em confissão, e de pregações que os orientassem na missa de domingo, para que pudessem enfrentar a semana árdua de trabalho, sentiram-se indignados com os modos sóbrios do padre. Apressaram-se a solicitar à Arquidiocese de Milão que outro pároco lhes fosse enviado.
Apesar de substituído, Padre Baptisto já havia criado fama em toda a região pelo dom especial que possuía de conversar não apenas com Deus e com os anjos, mas também com os espíritos imundos. Pessoas vinham de muito longe pedir-lhe ajuda e livramento para dores e males, retornando às suas casas com o fardo da vida mais leve. E ele foi se deixando ficar na comuna, com as bênçãos do arcebispo, que não desejava ver aquele dom alardeado.
Para seu lugar à frente da paróquia foi trazido Padre Luiggi, homem de conversas cheias e muitos afagos, amigo do Arcebispo de Milão. Com o tempo, começou a perseguir Baptisto, porque o queria longe dos paroquianos. Condenava-o pelo que chamava de “delírios e curandeirismo”. Baptisto passou a ignorá-lo e ambos seguiram adiante evitando confrontos.
Entretanto, em face dos acontecimentos presentes, Baptisto precisava intrometer-se nas coisas da comuna. Convencido de que as mortes estranhas assemelhavam-se mais aos malfeitos do diabo que aos desígnios de Deus, decidiu meditar e render-se ao mundo espiritual para conhecer um pouco mais do mistério daquelas mortes. Pensou, inicialmente, em recolher-se à pequena capela que construíra nos fundos da propriedade que ocupava em companhia de cães e porcos. Mas depois pensou que lá o Maligno e seus asseclas não se apresentariam a ele. Optou, então, por se sentar num banco de madeira na varanda da casa simples, iniciando um pedido de proteção ao Arcanjo Miguel: São Miguel Arcanjo, protegei-nos no combate, cobri-nos com vosso escudo contra os embustes e ciladas do demônio. Subjugue-o, Deus, instantemente o pedimos...
Encerradas as rezas, convocou as trevas:
— Apresenta-te criatura imunda. É o Senhor teu Pai e Deus quem ordena.
E assim prosseguiu, repetindo o comando, até que uma voz de mulher lhe respondeu:
— Controla a soberba, Baptisto. O teu Pai não ia gostar de saber que andas usando o nome dele em vão.
Assustado com a presença de um demônio feminino, Baptisto interpelou-o severamente:
— Quem és tu? Declara o teu nome agora!
— Lilith.
Confuso, Baptisto pensou que o Maligno tentava pregar-lhe uma peça.
— Não tente enganar-me, filho da escuridão! Diz-me teu nome, agora!
— Abyzou, Nahemah, Tunrida, Äiatar... Qual tu preferes, homem? Estamos todas aqui para te carregar conosco para o leito. Qual de nós irá satisfazer a tua carne, padre?
Recuperando-se do assombro, Baptisto perguntou:
— És tu que dizimas homens e mulheres em nome das podridões de Lúcifer?
Uma gargalhada chegou até ele, misturada a um hálito nauseante.
— Sim, sou eu quem os devora por dentro. Mas Aquele a quem tu chamas Pai permitiu-me a missão.
— Mentira! Cala-te! Tu és mesmo um insidioso cheio de intrigas fétidas!
— Sou? — desafiou-o a voz onde o escárnio brotava a cada frase. — Pergunta ao teu Senhor se falo ou não a verdade. Parece-me que teu Deus está mais a ter conversas comigo do que contigo, padre!
Mas eis que, subitamente, ouviu-se um grande barulho e a voz de Deus se fez ouvir, furiosa.
— Lilith, ordeno-te que pares de confundir esse homem! Diz-lhe de uma vez dos acontecimentos!
Sibilando, a mãe dos súcubos revelou a Baptisto o mistério das mortes:
— Padre, eu fiz um trato com o teu patrão. Que levaria por dia quantos lascivos encontrasse em meu caminho. Um acerto para livrar esta terra do pecado da carne. Nosso trato deu-se apenas para esta comuna, porque creio que o teu Pai não acreditou que fossem tantos. Mas a coisa vai a perder de vista! E olha que tenho livrado da foice os casados e as virgens que se entregaram por amor ou por promessas de bodas.
Vendo que o padre estava estarrecido, o demônio-fêmea provocou-o ainda mais:
— Queres que teu Deus volte atrás na palavra empenhada? É assim que o respeitas?
— Não tentarás o Senhor teu Deus! Não tentarás o...
— Sem lenga-lengas, homem! O tempo urge e a colheita é fértil! Se me deixo ficar de palração aqui contigo cai-me o número da coleta de hoje.
Baptisto considerou que Deus agira, como sempre, com justeza e princípios. E que Lúcifer, como era de sua natureza, mais uma vez tentava enganar o Criador.
— Senhor, para que tudo se dê como deve, pela justiça e pela caridade, eu gostaria de falar-te sobre algumas condições que deveriam recair sobre tal acordo, posto que nele não parece ter sido levada em consideração a imperfeição humana — disse o padre com cautela.
— Cala-te, subalterno! Não és tu que vives a repetir que tens obediência cega ao teu Senhor? — Lilith gritou.
— Cala-te tu, criatura pequena, de cuja boca só jorram sapos e escorpiões! — replicou ele.
Sem tirar os olhos do diabo, Baptisto dirigiu-se novamente a Deus:
— Falava-te, Senhor, das condições que foram esquecidas no acerto que fizeste com essa criatura maligna. A primeira delas é que é preciso que se dê aos homens a oportunidade de arrependimento; que possam ser avisados para desistir da luxúria e da devassidão. Pois que se não reconhecem que haja gravidade e perigo em tais pecados, não hão de saber que precisam e podem afastar-se deles.
Enquanto Lilith praguejava, o Senhor aprovou e acatou a primeira condição de Baptisto.
— Que mais queres impor a Deus, seu trapaceiro bajulador? — gritou o demônio-fêmea.
— A segunda condição é que a tua fome seja regrada, mulher-besta, e que a velocidade da tua colheita seja reduzida a uma alma por dia!
Desesperada, Lilith berrou:
— Então, Deus, tu não vês que teu padrezinho está querendo ensinar aos homens a falsidade? Eles pecarão muito mais, agora que podem arrepender-se!
— És tu a dissimulada, criatura do mundo inferior! — repeliu-a o Criador — És tu que tentas mais uma vez o Senhor teu Deus! Puno-te, agora, com as consequências! Permito-te, sim, que colhas os lascivos. Não porque te faça favores, mas porque é de tua obrigação carregá-los contigo para as profundezas de Satanás! Mas permito igualmente a Baptisto que alerte os homens sobre a ceifa. E ordeno-te, por fim, que não te atrevas a arrancar da vida mais de uma alma por dia.
Os protestos irados de Lilith se fizeram ouvir. Baptisto sabia que Deus encurralara a criatura e cutucou a fêmea de Lúcifer:
— Desistes de tudo? Este é um bom momento para recuares.
— Nunca! Aceito os termos desta vergonhosa barganha, mas peço ao Senhor teu Deus que me conceda algumas contrapartidas — disse a demônio-fêmea em dissimulada humildade.
— A que mais achas que tens direito? — irritou-se Deus.
— Peço-te, Senhor, uma pequena mudança. Insisto em que me permitas tombar dois homens por dia. Um mau, que será meu eternamente. Um bom, que irá contigo para o céu. Duas almas apenas. Colhidas a cada nascer ou pôr do sol. E não se fala mais nisso. A mim caberá executar as mortes. Porque eu creio que o Criador tem mais com o que se ocupar. E digo mais, mato os dois discretamente, sem revirar-lhes os olhos, sem provocar-lhes gritos de dor ou fazê-los passar por estertor prolongado. Silêncio e rapidez.
— Não vejo problema no pedido. É justo. Concedido. Duas almas, uma para cada lado. Agora, posso voltar despreocupado ao Paraíso — retrucou o Senhor.
— Espera, Deus! Só mais um minutinho, mais um minutinho! Quero pedir um último favor. Coisa à toa. Que imputes a Baptisto a obrigação de rezar pela salvação da alma de um dos mortos, e apenas de um, visto que seria trapaça rezar pelos dois. Mas que o proíbas de tentar saber antecipadamente qual das duas almas merece mais que a outra, para que não haja nenhum ludíbrio.
Vendo que ainda havia astúcia em Lilith, mas compreendendo que não podia furtar-se a mais esse pedido, sob pena de ser acusado de desonesto e ser desmoralizado pelo Maligno, Deus conclamou novamente Baptisto a cumprir o trato com o demônio-fêmea. Em seguida, retirou-se.
Naquela noite, o padre foi dormir angustiado, convencido de que havia se deixado envolver em mais um embuste de Lúcifer. No dia seguinte, e nos outros que vieram, as mortes passaram a acontecer aos pares, conforme o acerto entre a Luz e as Trevas. Baptisto usava das manhãs e das tardes para pregar a homens e mulheres sobre os perigos da lascívia e sobre as almas que eram entregues à escuridão eterna. Ao anoitecer, dirigia-se à capela em sua propriedade, escolhia a alma de um dos mortos daquele dia e rezava por seu descanso eterno. Em seguida, pedia a Deus que lhe permitisse sempre enxergar a alma mais virtuosa de cada dia, reconhecendo-a sem titubear no momento da escolha.
Por essa ocasião, e a convite do Padre Luiggi, o Arcebispo de Milão veio ter à comuna para abençoar os fiéis e regozijar-se com eles pelo fim de tantas e tão dolorosas mortes, embora ambos não entendessem como se dera o fim daquele mal. Mas, tão logo a autoridade eclesial pôs os pés na cidade, o céu fechou-se subitamente em tempestade. E sem que ninguém soubesse como, dois raios iguais caíram no mesmo exato instante, lançando ao solo da Lombardia os cadáveres de Padre Luiggi e do arcebispo. De uma só vez, estava feita a coleta do dia.
A voz e as gargalhadas de Lilith ecoaram por toda a comuna: “Escolhe agora, Baptisto, escolhe!” É assim que conta a lenda.
10 comentários:
li, deleitada, e se o enredo me seduziu, o que me levou até á última palavra foi a forma, o rigor, a beleza do português escorreito desta brasileira e perdoe-me que diga assim, Cinthia, mas de tanta baboseira que vejo escrita ali pelo FB e não é apenas a "tradução" do grande Machado, são escritas de português desfeado, torto, abraçado á fala como se não houvesse modo diverso de fala e de escrita. Obrigada pelo seu belíssimo exemplo que conheço de há muito, mas que este conto é exemplo
bjs amiga
Fenomenal! De tirar o Fôlego! Adoro histórias desse gênero! Muito melhor do que o Exorcismo de Emily Rose! É uma pena não ser um livro e acabar tão rápido! Amei!
Muito bom, como de hábito. Dessas leituras em que, quando a gente termina, pensa assim: valeu a pena. Parabéns, Cinthia!
O que dizer além de "a-do-rei"? Não sou critica literaria, apenas gosto ou desgosto, e gortei. Muito bom, Cinthia! (Desculpe a falta de acentuação em algumas palavras: não consigo encontrar o diabo do acento agudo nesse teclado estrangeiro. rsrs) Gina Girão
Minha amiga, Fátima, estou muito agradecida por seu comentário. Isso me enche de orgulho. A língua que partilhamos é belíssima. Vindo de você tem um sabor especial.
Maria Silvia, Marco Aurélio, Gina, obrigada pelos comentários!
Misteriosa, ardilosa, implacável: Lilith ou a escritora Cinthia? Ambas, é claro! Excelente!
O desafio de distinguir o virtuoso do pérfido, por detrás das aparências. Interessante!
Kkkk
Ao gen sabe como eu posso envocar e se demônio feminina eu quero ter contato com o demônio pra eu amor e ser amado
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