Receba Samizdat em seu e-mail

Delivered by FeedBurner

quarta-feira, 14 de maio de 2014

AQUELAS INESQUECÍVEIS DEZENOVE HORAS...

                                                     Cecília Maria De Luca

É preciso escrever. Não para ele. É preciso escrever para mim mesma, talvez para o mundo. De alguma forma é preciso que fique o registro daquelas dezenove horas. Preciso criar um momento de abstração. De abstração do mundo visível. Um momento de silêncio, de isolamento. Um momento para descrever, recriar e de alguma maneira absorver essas horas vividas com ele pela primeira vez, horas inteiras. Não mais aqueles encontros rápidos, troca apressada de palavras e olhares que anunciavam a possibilidade de um amor mil vezes sonhado, nunca vivido.

Ele foi me pegar onde me hospedava em São Paulo...

Não esqueço mais sua chegada naquele domingo ensolarado, início de tarde. O sorriso rasgado, o abraço gostoso e a ternura que transbordava de seus olhos. O passeio pelas ruas de Santo Amaro a caminho do charmoso restaurante que – claro, ele adivinhou – iria me encantar. A combinação perfeita de emoções e sentimentos de duas pessoas que, sabiam, foram feitas para estarem ali, frente a frente. De duas pessoas que, sabiam, foram feitas para se amarem. Perdi meu olhar na expressão do seu rosto ao saborear a massa escolhida, o vinho... Ao brincar com as araras em cativeiro.

Não esqueço mais a partida em busca de um lugar chamado Riviera. Da represa, dos barcos. Do bar que não era mais do antigo dono. Do fruto que caiu da árvore e que, afinal, chegamos à conclusão, era abacateiro. Aí vieram suas recordações. Ia me contando suas histórias e eu me deixava estar quieta, ouvindo e observando fascinada o seu jeito lindo e bem humorado de lembrar aventuras vividas. Como foi bom descobrir devagarzinho sua personalidade forte e gentil. Não falo da gentileza convencional, mas daquela gentileza que brota do imenso gostar das pessoas, da vida. Daquela gentileza que colocou uma sombra no seu olhar quando falou de injustiças, contrastes e preconceitos. A expressão de espanto diante da incompreensão de coisas que para ele, para nós, soam tão simples. 

Ele tem uma intensidade que me atrai, que me arrasta e me suga como se fosse um redemoinho me levando por caminhos de infinitos mistérios.

Quando a noite caiu, o céu cinzento e enfumaçado de São Paulo teimava em esconder a lua – que era cheia – mas não conseguiu apagar o brilho que conseguimos criar. Sim, havia uma luz intensa dentro daquele carro. Uma luz que estava nele, que estava em mim, ao nosso redor... Uma luz tão brilhante que fez surgir, mesmo no caminho errado, uma cafeteria na hora exata em que ele manifestou vontade de tomar café. Não uma cafeteria qualquer. Mas uma cafeteria com tom de aconchego, feita de encomenda para nós dois. Acho que não me espantaria se aquela cafeteria não existisse. E, naquele café, entre a observação de casais e seus relacionamentos, a nossa intimidade era palpável. 

A ideia de fazer amor com ele me fascinava e aterrorizava ao mesmo tempo. É que o nosso sentir era uma preciosidade. Tão raro, tão incomum que se, por algum descuido, o perdêssemos, a perda seria irreparável. Então, enquanto procurávamos o “flat” em que iríamos passar a noite, enquanto buscávamos bagagens, confesso que me senti, a princípio, em pânico, depois meio que anestesiada. Quando dei por mim, estávamos naquele quarto que lembrava um sonho que tivera com ele uma semana antes. O quarto era pequeno, mas – penso agora – ainda que fosse espaçoso feito suíte presidencial, nele não caberia o tamanho do meu amor, o tamanho da minha ansiedade, o tamanho da minha vontade de tocar aquele homem e de ser tocada por ele.

E as imagens ficaram gravadas, em sequência, uma por uma na minha mente. A mala desarrumada. A ausência do fio dental. O barulho do chuveiro enquanto ele tomava banho. O som que rolava. De como tiramos as roupas e, de repente, nós dois nus sobre a cama. Seus cabelos se misturavam com os meus, nossos corpos se fundiam e eu vibrava numa frequência até então desconhecida. Era algo além do físico, era quase mesmo irreal, assustador. As sensações saltavam do meu corpo, minha mente girava e, enquanto sua pele grudava na minha, enquanto meu rosto se enterrava em seu pescoço, segui com ele para lugares que me descrevera, por mares, rios e terra, a bordo do seu Jet ou na garupa de sua moto. Até que o amor explodiu. No mesmo rítimo, no mesmo compasso.

Ele se deixou ficar sobre mim por algum tempo, tempo suficiente para que eu voltasse daqueles espasmos que, pensei, não acabariam nunca. Ao abrir os olhos e ver seu rosto sobre o meu, senti minha solidão, meus questionamentos, minhas angústias, tudo se dissolver. Entendi finalmente porque havia vivido até aquele momento. Vivi para encontrar e amar aquele homem. 

Quando, enfim, ele se levantou, fiquei observando seu corpo. Esguio, gracioso, viril. Pensei em como gostaria de ser bonita e perfeita para ele. Consolou-me o fato de saber que, vestida de amor, qualquer mulher é perfeita e, naquela noite, eu me vestira com o amor mais puro e esplendoroso já visto no mundo.

Ele me estendeu sua mão antes de adormecer. Eu fiquei, como sabia que ficaria, velando seu sono. Fiquei ali, olhando para ele, ouvindo sua respiração compassada. Como eu amei aquele homem naquele momento!

Entre o acordar na manhã seguinte, ainda madrugada, o café e o embarque no avião, tudo foi tão rápido que só me lembro, mesmo assim confusamente, de que, na despedida, enquanto me abraçava, ele me sussurrou alguma coisa. Qualquer coisa como: “Me leve com você”, ou: “Fique comigo para sempre”. Como se fosse possível um corpo viver sem alma! 

Já no avião, em pleno voo, observando o espetáculo do sol se levantar, passou-me pela cabeça a frase de um livro lido recentemente: “Em um universo de ambiguidades, esse tipo de certeza acontece um única vez e nunca mais – não importa quantas vezes você viva.”

É isso. Precisava registrar aquelas dezenove horas vividas com ele. Dezenove horas em que celebramos o amor e a glória de viver!

Share




6 comentários:

Racconti l'amore in modo bellissimo.

Sensacional! Amei esse belíssimo encontro de amor! Quanta emoção! E o final! maravilhoso! deixou Casa Blanca no chinelo! Beijos

Parabéns pela belíssima crônica, Cecília. Muito envolvente o texto, lotado de emoção! Dezenove minutos de um intenso amor... Beijo. Patrícia Gontijo de Andrade

ambiguidades cotidianas saborosas, inigualáveis– seu texto tem sabor de café. parabéns pela produção!!

Sabrina, Julia e Bianca mandam cumprimentos por seu conto. Parabéns!

Postar um comentário