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quinta-feira, 22 de maio de 2014

Angelinas




Para o Bruno Mariano

Desde a unificação da antiga Terra, com a reorganização do território global em três faixas de dimensões milimetricamente equivalentes e configuradas como países, que questões de continuidade e ampliação populacional têm sido debatidas à exaustão nos fóruns da Organização das Nações Reunidas (ONR). Nos últimos três séculos, a população do planeta caiu drasticamente de 8 bilhões para 1,5 milhões de habitantes, em razão de baixa fertilidade. Pesquisas recentes garantem que as modificações naturais da anatomia humana devem eliminar rapidamente as características definidoras de gênero, convertendo os corpos em um tipo híbrido incapaz de se reproduzir. Segundo a comunidade científica, este sujeito estéril de um futuro próximo ainda não tem nome, ou categoria de investigação. Os estudiosos acreditam que a única saída para a sobrevivência da espécie seja desativar o gatilho que aciona a hibridização genérica, atacar a causa fundante.

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2413. Continente Una. 28ª Convenção Planetária da ONR. Conferência de Validação do Programa Angelina Mater. Junta científica multidisciplinar composta por renomados profissionais dos três países do mundo, especializados em procedimentos que combinam técnicas provenientes de áreas como biologia, genética, física quântica, psicologia, neurociência, história, matemática, sociologia, estética, política, filosofia, economia e comunicação detalha aos três presidentes o plano estratégico que promete reverter o processo de involução da raça humana. A equipe convence os chefes de estado de que a única chance de sobrevivência dos unocontinentinos é cortar pela raiz um hábito iniciado e intensificado entre os terráqueos no começo do milênio, uma prática comum especificamente entre as mulheres, em uma época marcada pela chamada cancerofobia, histeria coletiva impensável nos dias atuais.

Com carta branca para agir, cinco membros são designados a desenvolver a segunda fase do programa: atravessar o tempo em dimensão reversa e impedir a constituição do costume. A partida acontece poucas semanas após a validação oficial. O grupo participou da construção da Uterocápsula – um artefato tecnológico que ultrapassa pelo menos três tantos a velocidade da luz, projetado para atuar em condições complexas de mobilidade – e tem completo domínio da máquina.

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2013. Primeiro mês. Esperava pelo pior, mas não imaginava que as notícias médicas pudessem ser tão ruins. O oncologista aguarda que ela tire os olhos do exame e questione o laudo. Angelina perde as palavras e o alento, pisca com vontade de nunca mais abrir os olhos, queria que fosse diferente, malditas heranças.

- O que quer dizer a sigla BRCA1, John?

- Você sabe o que significa, Angie. É como sua mãe, mas com anos de vantagem em relação a ela. A decisão é sua.

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2013. Mês quatro. A decisão de retirar e de reconstituir os seios para prevenir a ocorrência de câncer de mama motiva outra decisão de Angelina: contar da própria escolha médica. Pessoa pública, envolvida ativamente em causas humanitárias, poderia estimular uma quantidade imensurável de mulheres a se precaverem efetivamente contra a doença se compartilhasse sua experiência e anunciasse o procedimento seguinte, a extração dos ovários. Estava segura de que poderia ser exemplo em saúde feminina. Estava pontuando o terceiro parágrafo quando eles aportaram em seu escritório.

Não teve tempo para estranhamento. Cinco pessoas descidas de um veículo minúsculo cresciam diante dela, com bocas enormes e familiares. Antes que perguntasse quem eram e o que queriam, os visitantes apresentaram-se. Eram Angelinas. Todos. Pareciam gente muito limpa, mas vagamente lembravam homens ou mulheres, de forma que Angelina não sabia como referir-se a eles individualmente. Repitam: quem são vocês e o que querem aqui, antes que eu chame os seguranças.

O Angelina mais alto passou a falar:

- Angelina, somos indiretamente seus descendentes. Viemos do futuro para demovê-la. Suas decisões até aqui foram acertadas, mas essa que você está prestes a tomar põe em risco a humanidade. Por favor, não conclua o artigo.

- Como sabem de mim? E do artigo?

- Sabemos por que a história está registrada na RedeUna. Pesquisamos o assunto há anos até chegarmos à fonte de nossa derrocada: sua decisão. Avance quatro séculos e compreenderá.

Os demais Angelinas posicionaram-se à frente da escrivaninha e com os dedos indicadores ergueram a tela holográfica onde o futuro passou feito cavalo a trote. Viu: enormes regiões do planeta com fauna e flora abundantes e concentrações de povoados em territórios delimitados, o trânsito ordenado por estradas, céu e mar, uma fartura de alimentação, trabalho, cultura e lazer. Chamou atenção a presença raríssima de crianças nas imagens e o aspecto diferente dos corpos das pessoas. Não conseguiu distinguir mulheres de homens.

- Você tocou o ponto, Angelina. Os poucos que somos estão envelhecendo e perdendo a capacidade de gerar vida nova, apesar de as condições de desenvolvimento serem ideais para a sociedade. Começamos a morrer aqui, com o efeito do seu artigo. Pedimos novamente, esqueça-o. Fale de suas escolhas médicas apenas aos amigos próximos. Não divulgue, não permita que a mídia especule, que sensacionalize, que faça da sua superação um espetáculo, um monumento à profilaxia.

- Porque não? O que acontece adiante? Como posso prejudicar a humanidade se minha intenção é justamente o contrário?

*

Um Angelina recua a projeção holográfica até o momento presente e pede atenção de todos. A sequência dispara e é clara. A atriz Angelina Jolie escreve ao jornal norte-americano New York Times declarando ter passado por uma dupla mastectomia preventiva, o que reduziu de 87% para 5% a chance de desenvolver câncer, e afirmando que em breve será submetida novamente a procedimento cirúrgico para retirada dos ovários pelas mesmas razões das primeiras intervenções. O relato repercute mundialmente, gerando uma procura jamais vista por exames de análise sanguínea e uma onda de operações de retirada e reconstituição de seios em hospitais públicos, privados e em clínicas estéticas pelo mundo.

Nas primeiras décadas, observa-se redução nos índices de câncer de mama na mesma proporção em que se registram queixas femininas de perda da sensibilidade dos seios e de insatisfação sexual. Sucedem-se gerações privadas do aleitamento materno e da aprendizagem de vínculos emocionais iniciais, a taxa de natalidade cai pela metade nos países ricos e tem significativa diminuição nos subdesenvolvidos. A puberdade das meninas tem o tempo devido, mas os seios não têm plena desenvoltura: crescem pouco, atrofiados, incapazes de produzir leite, até que, centenas de anos depois param de nascer. A ciência erradica o câncer de mama e de ovário. O desejo sexual de homens e mulheres pela figura feminina perde força. Os órgãos genitais masculinos sofrem processo semelhante às mamas femininas e, geração após geração, mínguam por falta de uso, pois a ciência cria maneiras eficazes de expelir resíduos dos rins sem que seja necessária a formação da urina. Nessa época, a bexiga é o novo seio.

Em velocidade, as imagens se formam e se desfazem na tela, mas Angelina Jolie acompanha tudo, sem interromper, sem dizer palavra. Outro Angelina congela a transmissão de dados tridimensionais logo após o estabelecimento da última ordem mundial. Olha Angelina nos olhos por pura tradição de manter contato visual, pois não expressa sensação alguma. O Angelina mais experiente, o mestre da operação, resume o final do episódio:

- Querida, nossa raça prosperou em conhecimento, descobriu caminhos para alongar o tempo de vida e aprendeu a conviver pacificamente, mas não soube preservar o elo fundamental: a maternidade. Somos um povo de afetos verdes. Nossas emoções estão latentes, mas não chegam a eclodir, não amadurecem, não se expressam. E por isso, nossas possibilidades de gerar vida, genuinamente humana, estão por um fio. Compreende agora porque precisamos que mude de ideia?

- Sim, balbuciou uma Angelina Jolie atônita, que respirou fundo, muito fundo, bem fundo, antes de fechar o arquivo no computador em que estava trabalhando quando eles chegaram. E deletar.

Os Angelinas acenaram com a cabeça em agradecimento, diminuíram de tamanho e voltaram para aquilo que parecia uma nave saída de filmes hollywoodianos de ficção científica, julgou Angelina Jolie. Ao desembarcar no meio de maio de 2413, a comitiva de cientistas deparou-se com uma recepção inusitada. Nada de balões de gás hélio soltos no ar e fogos de artifício, ou banquete presidencial, como se confabulou na viagem. Quando os estudiosos saíram do laboratório para pisar a rua, viram mulheres e homens e bebês e sorrisos, e ouviram buzinas e resmungos e xingamentos em filas, e pássaros em gaiolas e cães em coleiras, e fumaça densa e árvores escassas. E repararam nas formas arredondadas e protuberantes das barrigas de dois Angelinas, que de repente definiram-se duas. E sentiram um arrepio nas costas. Sentiram

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Andréia Alves Pires
Nasceu em Rio Grande, cidade ao sul do Rio Grande do Sul, é jornalista, mestre em história da literatura e autora do livro de contos De solas e asas. Integra o Coletivo Fita Amarela, colabora semanalmente com contos ao jornal Diário Popular e publica o que escreve, em primeira mão, no blog www.desolaseasas.blogspot.com.
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