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sexta-feira, 2 de maio de 2014

A MAIS PERFEITA SINTONIA

Mario e Maria eram tão afinados, cúmplices e solidários que diziam menstruar juntos.
O casal vivia um amor simbiótico, como se um ser indivisível fosse.
Mesmo em corpos diferentes, suas almas se confundiam num grude só.
Gostavam dos mesmos gostos, destilavam os mesmos ódios,
cantavam as mesmas músicas, dançavam os mesmos ritmos,
rezavam pelos mesmos santos, liam os mesmos livros,
bebiam dos mesmos copos, torciam pelo mesmo time,
comungavam das mesmas opiniões, esbaldavam-se das mesmas delícias,
gozavam o mesmo gozo.
Quando choravam, choravam os dois. Quando riam, riam na mesma hora.
Não divergiam, não discutiam, não discordavam. A harmonia era soberana,
na bonança e na tristeza, no tufão e na calmaria, no vigor e na doença.
Quando sentiam dor de cabeça dividiam as aspirinas. Xingavam pela topada do outro,
espirravam em dueto,  tossiam em raro sincronismo. Até TPM repartiam,
com humores alterados, dores somatizadas,  fantasmas compartilhados.
Não tinham filhos por opção. Egoístas, não se enxergavam amando mais
do que a si próprios.

Até que chegou Violeta, filha da prima distante, para uns tempos de estudo na cidade.
Foi morar com eles. Menina já mulher, iluminada e especial, cativante e esplendorosa,
meio tímida, meio atirada, meio anjo, meio diabo.
Certa noite, partilhando da mesma insônia de Maria, Mario puxou o assunto.

- Amor, tenho que te contar uma coisa. É papo brabo.
- Desembucha, homem.
- Essa menina Violeta, sei não, Maria, essa convivência inusitada está mexendo 
comigo. Nunca imaginei que isso fosse acontecer com a gente. Ela me tira do sério, 
me cutuca as vontades.
- Não me diga que está se apaixonando por ela, Mario?
- Como você percebeu?
- Porque também estou, querido. Completamente. É coisa forte e perturbadora. 

Antes que o sol nascesse, Mario e Maria foram ao quarto ao lado.
E fitaram Violeta nua, semi embrulhada nos lençóis, cabelos castanhos
emaranhados sobre o rosto, pernas abertas fazendo um quatro, mão sobre a relva
do sexo exposto, provocando um ligeiro movimento pélvico ritmado
por delicados suspiros.

Sinal de que boa coisa ali se sonhava.
Mario e Maria assistiram ao ressonar de Violeta, abraçados, pulsantes e
desejosos de que aquilo não acabasse nunca. Mas eis que Violeta acorda de supetão.
Senta-se na cama, tira os cabelos do rosto, tenta cobrir com travesseiro os seios em riste.
A menina ronrona com sua pureza maldosa.

- Mario, Maria... fiquem aqui comigo. Estou tendo sonhos estranhos...

E assim inauguraram os três uma vida a dois.
Passaram a dividir cama, mesa, banho e óbvias gostosuras.
Riam, se divertiam, faziam-se de gato e sapato, dormiam abraçadinhos,
preparavam comidinhas, assistiam DVD, saiam para dançar, passear,
tomar chope no botequim. Tinham planos para o futuro, casa de campo,
viagem a Europa, um filho, talvez, por que não? Um homem e duas barrigas,
era só escolher.

Mas um dia Violeta não chegou.
Mesa posta para três, um silêncio foi servido na hora do jantar.
Meia noite, noite e meia, madrugada, sol nascendo.
Da janela, quatro olhos desassossegados entre persianas trêmulas e respirações
suspensas, avistam um carro na entrada do edifício.  Violeta exuberante,
vestido esvoaçante, cabelos desajeitados, sandálias de salto na mão,
sorriso de quero mais, se despede de um vulto alto e forte, supostamente bonitão.
Um beijo eterno e contundente, facada em dois corações.

Naquele instante flagrante, Mario e Maria experimentaram, mais do que nunca,
a perfeição suprema da sintonia. Quatro orelhas arderam, quatro pernas bambearam
no mesmo chão que se abria. Duas gargantas, um nó. Um soco num peito só.

Pela primeira vez na vida, conheceram o ciúme.
De corroer os estômagos siameses, suar as mãos entrelaçadas.
Nos corações gêmeos e nas testas parelhas, a mesma dor da traição.

                   
                    ("A Mais Perfeita Sintonia" faz parte do livro do mesmo autor 
                     "A Primeira Noite de Melissa", Litteris.)

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José Guilherme Vereza
Carioca, botafoguense, pai de 4 filhos. Redator, publicitário, professor, roteirista, escritor, diretor de criação. Mais de mil comercias para TV e cinema. Uma peça de teatro: “Uma carta de adeus”. Um conto premiado: “Relações Postais”. Um livro publicado “30 segundos – Contos Expressos”. Mais de 3 anos na Samizdat. Sempre à espreita da vida, consigo modesta e pretensiosamente transformar em ficção tudo que vejo. Ou acho que vejo. Ou que gostaria de ver. Ou que imagino que vejo. Ou que nem vejo. Passou pelos meus radares, conto, distorço, maldigo, faço e aconteço. Palavras são para isso. Para se fingir viver de tudo e de verdade.
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