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terça-feira, 20 de maio de 2014

A Copa do Mundo do Zé

O magrinho Zé Tomé, pacato funcionário público federal, morava com a família numa vila do Catumbi,
onde mal falava com os vizinhos de tão tímido e recatado. O comando da casa ficava por conta de sua mulher Edite, vigorosa mãe de três filhos, terror da vizinhança pela sua rabugice e rigor disciplinar, braços fortes de tanto esfregar roupa no tanque e lavar panela. Diziam que batia no marido.
Os jogos da Seleção Brasileira na Copa que o Brasil sediava vinham mobilizando todos os corações.
Quem não ia ao estádio, ficava em casa ou nos botequins, em estado de oração, quase de joelhos em volta
de caixas geralmente de madeira escura com frisos e botões dourados, chamados rádios.
A paixão era contagiante. Cada exibição do Brasil nas vozes dos locutores soava como resgate da auto estima de um povo, até então incorporado pelos espíritos dos viralatas, dos chinfrins, dos mequetrefes.
Mais eis que chega a final contra o mediano time do Uruguai, a grande final, a redenção nacional,
que colocaria o orgulho de ser brasileiro nos peitos estufados e soberbos do país, do Presidente da República ao soldado raso, do médico renomado ao catador de papel.
Naquele domingo, Zé Tomé acordou com uma surpreendente determinação.
- Hoje vou ao estádio!
A família estranhou o rompante, mas nem a mulher mandona teve coragem de demovê-lo da ideia.
O dia prometia festa e não seria a ausência de um pai banana em torno do rádio que mudaria um destino tão certo e glorioso. De paletó e chapéu, Zé Tomé sai para as ruas, vê o bonde para o Maracanã apinhado de gente se aproximando como um corso de carnaval. E pega o do destino oposto: Cinelândia. Bonde vazio de dar dó, como as ruas do centro da cidade, por onde correu apressado até uma leiteria na Avenida Central, igualmente vazia de dar dó, mas com uma mesa especialmente preenchida.
Era Dircinha, sua colega de repartição, com seu vestido justo e lábios carnudos de batom carmim,
que sorvia um frappé de coco a espera do amante.
- Dircinha, meu bem, nunca vi esta cidade assim.
- Um dia perfeito para nós, Tomèzinho. Foi Deus que colocou essa final de Copa do Mundo no nosso caminho.
E da lá partiram para um hotel na Mem de Sá, onde trancaram portas e janelas, isolando seus mundos de
excitações românticas transgressoras, do mundo lá de fora, dos foguetes e dos gritos antecipados de Brasil Campeão.
Entraram pela tarde, comemorando o álibi. Aproveitaram ao máximo o tempo concedido pelo destino.
De suspiro em suspiro, chegaram ao momento de vestir suas roupas.
- Estranho, Dircinha. A cidade está silenciosa.
- Será que o jogo não acabou?
Zé Tomé consultou o relógio de bolso:
- Acabou sim, meu bem. E eu não estou acreditando no que realmente possa ter acontecido 
Despediram-se ali mesmo, em plena Mem de Sá, já apressados e aflitos para chegarem em suas casas.
Pelos trilhos de seus bondes, foram respirando os ares do desastre: ruas silenciosas, alguns mais exaltados
chutando latas, algumas explosões de choros incontidos. A tristeza em cada esquina falava por si só: Uruguai 2, Brasil 1.
Assim como a cidade inteira, a vila do Catumbi era um velório. Zé Tomé entrou em casa de chapéu na mão, sorrateiro e amedrontado, tremendo da cabeça aos pés. Encontrou Edite aos prantos, jogada no sofá, rodeada pelos três filhos chorosos, a mesa posta com um bolo intacto em forma da Maracanã,
e uma bandeira do Brasil amarrotada pelo chão.
Edite olha furibunda para o marido:
- O que você tem a me dizer, seu traste? 
Zé Tomé baixa a cabeça, aperta o chapéu. Fica mudo, resignado, com medo de dizer o que não deveria dizer.
- Você é um pé-frio, desgraçado! A única vez que vai ao estádio dá nisso!
Edite, fora de si, esquece que tem filhos e vizinhos. Puxa Zé Tomé pelo paletó aos trancos e safanões
até o quarto do casal, bate a porta ensandecida e aplica no marido uma memorável surra de chinelo e cabide.

(Este conto faz parte do livro do autor "A Primeira Noite de Melissa", Litteris, 2013)


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José Guilherme Vereza
Carioca, botafoguense, pai de 4 filhos. Redator, publicitário, professor, roteirista, escritor, diretor de criação. Mais de mil comercias para TV e cinema. Uma peça de teatro: “Uma carta de adeus”. Um conto premiado: “Relações Postais”. Um livro publicado “30 segundos – Contos Expressos”. Mais de 3 anos na Samizdat. Sempre à espreita da vida, consigo modesta e pretensiosamente transformar em ficção tudo que vejo. Ou acho que vejo. Ou que gostaria de ver. Ou que imagino que vejo. Ou que nem vejo. Passou pelos meus radares, conto, distorço, maldigo, faço e aconteço. Palavras são para isso. Para se fingir viver de tudo e de verdade.
todo dia 20


1 comentários:

Só nós sabemos que Zé Tomé está inocente desse desastre. Mas a justiça faz-se, ainda que pelos motivos equivocados. Eh, eh!

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