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terça-feira, 22 de abril de 2014

No céu com diamantes

Não era de bebida. Ingeria refrigerante socialmente, suco industrializado ou natural ocasionalmente, alcoólicos raramente e água sempre. Tinha no bolso ou na bolsa uma garrafinha à mão toda vez. Não fumava cigarro, nem cachimbo, nem maconha, nem. Só passivamente, em filas de paradas de ônibus, em barzinhos com os amigos, no meio da multidão de caminhantes no centro da cidade, vez ou outra dava azar de andar atrás de transeuntes-chaminé. Por não ter vícios, e não julgava quem cultivasse os seus, por levar a vida numa boa, na manha e na paz, dizia-se um cara saudável. Nada de apostar a mãe mortinha embaixo do caminhão. Otávio jurava por sua saúde, pelo que podia por o braço inteiro na fogueira. Fazia tudo certo, da rotina regrada aos exercícios físicos, carregando para lá e para cá uma cuca muito fresca. Até que, na visita anual, o clínico prescreveu exames extras, além do hemograma.

Não me leva a mal, doutor, mas o senhor acha mesmo que precisa saber do meu estômago por dentro? Eu contei de uma ardência e um inchaço que me duraram dois dias e meio, coisa que obviamente tem relação com a feijoada de sábado. Como recusaria? Minha mãe não cozinhava uma feijoada completa assim há anos. Costumo me conter, só que naquele dia abusei. Foi isso. O médico, manso e vagaroso como boi, explicou que era bom ver, eliminar qualquer fresta de suspeita, blindando aquele corpo de certezas novamente. Não havia de ser nada além de uma indisposição, conforme supôs o paciente. Vai ver, sim, Otávio, sexta-feira, às 15h, com o gastroenterologista fulano, que atende aqui mesmo, no consultório do fim do corredor. A secretária já marca na saída, está bem?

No dia e horário agendados, Otávio estava lá, banho tomado e as tripas feito canudos de milk shake, atravessando um jejum tão longo e violento que nem água podia. Um medo inconfessável o acompanhava. Tinha ouvido horrores sobre a anestesia. Na sala de espera, o pavor de remédios induzia previsões catastróficas: enfermeiras injetando substâncias tóxicas em uma das nádegas, aplicando soníferos em veias difíceis de achar, o médico cavoucando suas entranhas com pinças enquanto ele jaz inerte na maca branca. Otávio, sua vez, chamou a anestesista.

Ele foi, encantado com a moça de jaleco branco e cabelos amarrados em coque. Antes de deitar de costas para ela, recebeu spray anestésico na garganta e no braço direito, agulha. Primeiro vais sentir uma tontura, é normal, mas ainda não será momento de dormir, preveniu a moça. A vertigem realmente aconteceu, mas para o que veio depois não houve aviso. Essa moça que me olha e me cuida, que mágica é essa, tão bonito aqui, vem cá, querida, nasce amor em lugares bem incomuns, não é mesmo, a gente podia casar na beira da praia com tochas acesas iluminando o caminho até o altar de areia e depois então trocamos sins e voamos até encostar a ponta dos nossos dedos nos diamantes lá no céu e se eu morresse agora até que seria lindo e. Pronto, Otávio. Terminamos por aqui. Em seguida, o resultado. Uma úlcera considerável. Comece o tratamento com doses diárias do comprimido tal e daqui oito semanas retorne para novo exame, em que vamos reavaliar o caso. Otávio agradeceu a atenção e foi embora, perplexo e ansioso pela próxima sedação.

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Andréia Alves Pires
Nasceu em Rio Grande, cidade ao sul do Rio Grande do Sul, é jornalista, mestre em história da literatura e autora do livro de contos De solas e asas. Integra o Coletivo Fita Amarela, colabora semanalmente com contos ao jornal Diário Popular e publica o que escreve, em primeira mão, no blog www.desolaseasas.blogspot.com.
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