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quarta-feira, 20 de novembro de 2013

O tempo e a saudade

Acorda antes do despertador, lava o rosto com gel purificante, dá tapinhas nas bochechas,
entra no legging, se afina, calça os dois tênis de uma vez, veste o bustiê francês,
prende o rabo (de cavalo), enfia o ipod no ouvido, vai um yogurte no embalo, garrafinha de
chá na cintura, sai correndo pela escada, ganha a rua, correr é tesão, entra pela academia,
disfarçando a tensão, cantarolando alegria. Sobe na bike estilosa, spinning até cansar,
mas como não cansa jamais, ginástica localizada é a vez: peso nas canelas, bunda dura é bunda desejada, perna bela é perna torneada, abre o peitoral, fecha o peitoral, halteres pra lá,
halteres pra cá, sobe ferro, baixa ferro, puxa aqui, puxa dali, trinta abdominais,
cinquenta abdominais, cem abdominais, duzentas, trezentas, quinhentas, vai pro Guiness essa mulher. Pinga o suor, parece que se esvai, fitinha na testa não deixa rosto a impressão do sofrer. Alonga daqui, alonga dali, beija o chão e os pés sem dobrar a perna. Uma sessão de pilates encerra a longa e atribulada manhã. Suaves movimentos energéticos. À casa, aos trotes. Fé na lipo, no lifting, na plástica onde for preciso, crença na beleza eterna. Chuveiro morno e gostoso, banho de deusa,
quase gozo. Cremes e anti rugas, botox ficou maravilha, boquinha de boneca, beijinho arrebitado no espelho, peitinho em riste pelo silicone, pálpebras em permanente estado de alerta, o corpo fininho, tudo em cima. Alface é a refeição, suco de beterraba com mamão, direto para o salão, hora da massagem, das unhas e da depilação. Fica em dia com o mundo por Caras e Contigo, comenta com o cabeleireiro amigo o progresso do processo de emagrecimento da jornalista e do jogador no Fantástico. - É Fantástico, fica feliz em dizer. Sai lisinha feito Barbie, leve, ereta, sequinha,
um vara pau. Zanza pelo shopping sem cair do salto, pouco sorri – dá pé de galinha. Encontra as amigas para um chá, falam que a vida é o que há.
À noitinha, de volta para casa, hora de relaxar. Que dia! Que banho! De sais, desta vez. Uma nova mulher, assim se sente. O vestido solto, a sapatilha que vela o joanete, o cabelo escorrido - uma cortina progressiva -, o batom indiscreto, o pescoço rijo, o nariz em pé.
A bronca na empregada, sobre o único e recorrente assunto:
- Já disse, Maribel, eu não como nada, quem gosta de jantar é o seu Osmar.
O marido provedor, cansado de não sei de quê, chega austero e faminto, dá-lhe um falso beijo na testa e lhe fita da cabeça aos pés. No fundo, o infeliz pensa o que não diz:
- Uma boneca inflável. Durinha, lisinha, peladinha, e sem nada por dentro.
E no instante seguinte, cai o ogro no chão: o estúpido pensar sucumbe por si só e desaba-lhe uma culpa torrencial. Abraça a mulher com ternura e afeto, sente contra o peito seu corpo seco e a alma oca. A cada afago, lembra com saudade e delicadeza a rechonchuda gostosa, alegre, cheia de vida e
bom humor, por quem um dia se apaixonou. Tempos, tempos atrás.

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José Guilherme Vereza
Carioca, botafoguense, pai de 4 filhos. Redator, publicitário, professor, roteirista, escritor, diretor de criação. Mais de mil comercias para TV e cinema. Uma peça de teatro: “Uma carta de adeus”. Um conto premiado: “Relações Postais”. Um livro publicado “30 segundos – Contos Expressos”. Mais de 3 anos na Samizdat. Sempre à espreita da vida, consigo modesta e pretensiosamente transformar em ficção tudo que vejo. Ou acho que vejo. Ou que gostaria de ver. Ou que imagino que vejo. Ou que nem vejo. Passou pelos meus radares, conto, distorço, maldigo, faço e aconteço. Palavras são para isso. Para se fingir viver de tudo e de verdade.
todo dia 20


3 comentários:

Ai, Zé Guilherme! Muito sua fã! Precisa-se de mais homens como você neste mundo de perfeições! Como sempre, amei seu texto!

Belíssimo e, não fosse recorrente e triste o modo de viver de tantas mulheres, divertidíssimo texto. Parabéns ao autor!

Eu achei o texto magnífico, pelas questões que declara. Evidencia algo que considero bastante grave, e que não temos ainda uma opinião totalmente formada sobre o assunto - a busca incansável pela melhoria da aparência em detrimento de um desenvolvimento psicológico, cultural e intelectual.
Acho que a nossa visão ainda é muito superficial a respeito de um desequilíbrio que se dá tanto no nível social quanto psicológico. Existe, hoje, uma inversão de valores, a venda de certos "sonhos", entretanto, somos observadores. Me pergunto o que passa, realmente, na cabeça de pessoas desse tipo (que não se reduz apenas à esfera feminina!) Estás de parabéns, José! ;)

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