Acorda antes do despertador, lava o rosto com gel purificante, dá tapinhas nas bochechas,
entra no legging, se afina, calça os dois tênis de uma vez, veste o bustiê francês,
prende o rabo (de cavalo), enfia o ipod no ouvido, vai um yogurte no embalo, garrafinha de
chá na cintura, sai correndo pela escada, ganha a rua, correr é tesão, entra pela academia,
disfarçando a tensão, cantarolando alegria. Sobe na bike estilosa, spinning até cansar,
mas como não cansa jamais, ginástica localizada é a vez: peso nas canelas, bunda dura é bunda desejada, perna bela é perna torneada, abre o peitoral, fecha o peitoral, halteres pra lá,
halteres pra cá, sobe ferro, baixa ferro, puxa aqui, puxa dali, trinta abdominais,
cinquenta abdominais, cem abdominais, duzentas, trezentas, quinhentas, vai pro Guiness essa mulher. Pinga o suor, parece que se esvai, fitinha na testa não deixa rosto a impressão do sofrer. Alonga daqui, alonga dali, beija o chão e os pés sem dobrar a perna. Uma sessão de pilates encerra a longa e atribulada manhã. Suaves movimentos energéticos. À casa, aos trotes. Fé na lipo, no lifting, na plástica onde for preciso, crença na beleza eterna. Chuveiro morno e gostoso, banho de deusa,
quase gozo. Cremes e anti rugas, botox ficou maravilha, boquinha de boneca, beijinho arrebitado no espelho, peitinho em riste pelo silicone, pálpebras em permanente estado de alerta, o corpo fininho, tudo em cima. Alface é a refeição, suco de beterraba com mamão, direto para o salão, hora da massagem, das unhas e da depilação. Fica em dia com o mundo por Caras e Contigo, comenta com o cabeleireiro amigo o progresso do processo de emagrecimento da jornalista e do jogador no Fantástico. - É Fantástico, fica feliz em dizer. Sai lisinha feito Barbie, leve, ereta, sequinha,
um vara pau. Zanza pelo shopping sem cair do salto, pouco sorri – dá pé de galinha. Encontra as amigas para um chá, falam que a vida é o que há.
À noitinha, de volta para casa, hora de relaxar. Que dia! Que banho! De sais, desta vez. Uma nova mulher, assim se sente. O vestido solto, a sapatilha que vela o joanete, o cabelo escorrido - uma cortina progressiva -, o batom indiscreto, o pescoço rijo, o nariz em pé.
A bronca na empregada, sobre o único e recorrente assunto:
- Já disse, Maribel, eu não como nada, quem gosta de jantar é o seu Osmar.
O marido provedor, cansado de não sei de quê, chega austero e faminto, dá-lhe um falso beijo na testa e lhe fita da cabeça aos pés. No fundo, o infeliz pensa o que não diz:
- Uma boneca inflável. Durinha, lisinha, peladinha, e sem nada por dentro.
E no instante seguinte, cai o ogro no chão: o estúpido pensar sucumbe por si só e desaba-lhe uma culpa torrencial. Abraça a mulher com ternura e afeto, sente contra o peito seu corpo seco e a alma oca. A cada afago, lembra com saudade e delicadeza a rechonchuda gostosa, alegre, cheia de vida e
bom humor, por quem um dia se apaixonou. Tempos, tempos atrás.
quarta-feira, 20 de novembro de 2013
O tempo e a saudade
por José Guilherme Vereza
3 Comentários
3 comentários:
Ai, Zé Guilherme! Muito sua fã! Precisa-se de mais homens como você neste mundo de perfeições! Como sempre, amei seu texto!
Belíssimo e, não fosse recorrente e triste o modo de viver de tantas mulheres, divertidíssimo texto. Parabéns ao autor!
Eu achei o texto magnífico, pelas questões que declara. Evidencia algo que considero bastante grave, e que não temos ainda uma opinião totalmente formada sobre o assunto - a busca incansável pela melhoria da aparência em detrimento de um desenvolvimento psicológico, cultural e intelectual.
Acho que a nossa visão ainda é muito superficial a respeito de um desequilíbrio que se dá tanto no nível social quanto psicológico. Existe, hoje, uma inversão de valores, a venda de certos "sonhos", entretanto, somos observadores. Me pergunto o que passa, realmente, na cabeça de pessoas desse tipo (que não se reduz apenas à esfera feminina!) Estás de parabéns, José! ;)
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