Amamentação. Palavra cheia de vida, que alimenta e fortalece. Por outro lado, na crueza do dia a dia, prática que enfraquece as leiteiras e as condena à perda do viço. Porque é batata: enquanto o bebezão cresce e ganha dobras, a mãe definha e perde a sã consciência. A criadora é consumida pela cria, coitadinha (da mãe).
O pós-parto é momento de exaustão, perda de memória, desligamento, desvario. Durante a licença de 120 dias — ou 180, se a mãe for muito sortuda, digo, uma agraciada funcionária pública —, os meses, horas e segundos se resumem a dar leite, muito leite, em irregulares e ininterruptos intervalos, que desrespeitam a madrugada e ferem de morte a saúde do sono. Pensa que é fácil ver grudado ao peito, pendendo nos braços e coluna, o bezerrinho que ganha gramas, quilos, arrobas?
Pois eu conheci uma mãe condenada a cumprir nove anos de xilindró só porque amamentava. A maior injustiça. Certamente o juiz nunca conviveu com uma nutriz (palavra mais linda, hein?). Foi assim: a tal mulher, Letícia, pôs para ferver numa panela seus dois protetores de mamilo — aquelas conchas de silicone usadas entre o sutiã e os peitos, que servem para aparar as perdas de leite. São apetrechos muito úteis, que livram as pobres vacas holandesas da vergonha de serem vistas com as blusas ensopadas bem nos alvos. Como fazia todos os dias à noite, Letícia largou as conchinhas no fogão e deitou-se ao lado do berço do filho. A ideia era só descansar até a água borbulhar; mas a mulher adormeceu rápido, logo alcançando o mais abençoado dos sonos e sonhando o mais intenso dos sonhos. Esqueceu-se, é claro, de desligar o fogo.
E como as tragédias não dão trégua nem para as estéreis tampouco para as férteis, calhando no seco e no borbotoante, o pior aconteceu: a borracha do silicone derreteu, a panela virou chama, o botijão de gás explodiu, os barracos de madeira vizinhos se contaminaram, a rede elétrica e suas gambiarras deram curto, a fumaça e as labaredas tomaram conta de tudo. Por causa do engarrafamento nas vias, o acesso ficou difícil e o socorro dos bombeiros demorou a chegar àquele que era o subúrbio de uma moderna metrópole. Assim, de explosão em explosão, no mês mais seco do ano, cidade e vegetação próxima foram se consumindo no inferno causado pela culposa negligência da doce mãezinha. Com a boa intenção de dar um peito asseado ao filhote, a mãe provocou um incêndio gigantesco, a morte de oito criaturas desmamadas e a destruição de centenas de residências e estabelecimentos comerciais. Sr. Osvaldo, o padeiro que vendia leite de cabra, foi uma das vítimas do incêndio. Em quase duas horas de fogo, o cenário virou carvão.
Letícia saiu ilesa do fogo. Nenhuma queimadura sequer. Tudo ao redor tostou e ruiu, enquanto ela e seu gorduchinho nada sofreram. Quando acordou, cutucada pelos peritos, assustou-se com todo aquele cinza e a catinga de queimado absoluto. Era hora de amamentar, pensou, sem o menor sentimento de culpa. O bezerrinho começava a berrar de fome. Os seios da criminosa jorravam leite.
terça-feira, 26 de novembro de 2013
Leite quente
por Maria Amélia Elói
1 comentário
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Texto interessante, estiloso, muito bem escrito. Parabéns Maria Amélia!
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