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terça-feira, 19 de novembro de 2013

E agora, José?

E agora, José?

Faz alguma coisa. Mexa-se. Fuja. 

O relógio-ponto marca 8:59 da manhã. É mais um dia na fábrica, mais um dia em meio a tecidos, linha e botões. No entanto, José trabalha no almoxarifado cuidando de todos os itens de limpeza. É encarregado de organizar amaciantes, alvejantes, sabão líquido e demais produtos, de forma que o tecido das roupas produzidas ali chegue ao consumidor com uma aparência de roupa limpa, sem cheiro de “guardado.” 
Num ato de coragem, José sai correndo e deixa o relógio-ponto carregando lentamente os seus ponteiros, como se fossem os fardos suportados em cada dia de trabalho naquele local sufocante.
Uma vez efetuado o ato de fuga, precisa pensar no que fazer. Lembra de uma praça com lindas margaridas, cuja beleza nunca conseguiu admirar totalmente, pois chegar na hora era a regra do dia. Move suas pernas, ainda hesitantes, para o local desejado. Senta-se na grama mesmo, deixando o ar verde invadir os seus pulmões. Ouve sua mãe reclamando de seu ato inconsequente. Vai comer o que? Vai vestir o que, de agora em diante? Eu não vou te sustentar! Marmanjo. Nunca foi pra trabalho mesmo!

Pobre José. Há 10 anos trabalhando em um emprego totalmente mecânico, solitário. As pessoas consumidas no movimento enferrujado daquelas máquinas não tinham tempo de conversar entre si, mal conseguiam balbuciar um bom dia. É assim a realidade da classe cuja liberdade de gostar de viver, de sentir prazer de abrir os olhos todas as manhãs, lhe foi roubada. O que existe é o verbo agir, não pensar. O relógio-ponto te chama, você marca no cartão que estava ali naquele momento, que irá seguir trabalhando o resto do dia e tudo bem. 
Resolve sair da praça e dirige-se a um bar não muito longe dali. Lembra que seu café da manhã consistiu em um copo de café e um pão com margarina, muito pouco para aguentar as reclamações de seu estômago até o horário do almoço na fábrica. Entra no estabelecimento. Percebe que ali, algumas pessoas estão bem animadas. Um senhor de idade lhe sorri com os olhos e faz um sinal simpático com as mãos. José senta em uma mesa, em seguida vem uma moça anotar seu pedido. Ela é bonita, simpática. Deseja-lhe bom dia, pergunta com entusiasmo o que irá querer, diz que a torrada da casa é uma ótima pedida para as primeiras horas da manhã, etc., etc. 

O falatório da mulher deixa José tonto, confuso diante de tanta vida em lugar tão trivial. Pede o sugerido pela garçonete. Ah, e uma cerveja, por favor. Enquanto o pedido não vem, José saboreia uma sensação há muito não sentida. É estranho estar ali, numa manhã de segunda-feira, às nove horas. Nesse momento, deveria estar trancado em sua salinha, fazendo o levantamento de quantos sabões líquidos foram usados durante a semana e quantos mais serão necessários para dar conta da produção mensal. Tudo isso anotado em uma planilha. O dia de José é basicamente contar recipientes, anotar os dados num papel, fazer as contas de cabeça e lançar os resultados para um homem que anda sempre de camisa e gravata. 
Seu pedido chega. A aparência da torrada lhe faz salivar. Come com avidez, bebe a cerveja com calma, como se cada minuto de sua vida dependesse de cada uma daquelas gotas consumidas. Como era bom o gosto daquele pão com queijo e presunto, prensado. O que faria agora? Era preciso pensar nisso, também. Afinal, em pouquíssimo tempo, já não teria mais como pagar nem por um cafezinho, dirá uma cerveja.
O importante é não ser covarde, José. A economia do país está mudando. Dizem que as condições de emprego estão melhorando, está mais fácil de entrar para a universidade... sempre quis ser advogado... será que esse era o sinal do destino, o toque do sino em sua mente, o empurrão final que lhe faltava? Será?
Paga a conta, deseja um bom dia para a garçonete alegre (provavelmente tão saturada daquilo tudo quanto ele daquela fábrica), acena timidamente para o homem idoso, como se dissesse “nos vemos por aí” e sai a esmo, como que para resolver um problema, mas sem nenhuma urgência. Apenas um problema para ser resolvido e nada mais. 

Caminha toda a Avenida principal pensando no que fará de seu futuro. Ah, dane-se! Ainda tem arroz e feijão nos armário. Bastante coisa, meso. Café, açúcar. Leite não preciso disso. Falo com o Ribeirinha e ele me arruma uns serviço pra fazer na sapataria. Vou no horário que bem entendo e ganho uns troco pra me manter. Praquela fábrica é que não volto mais. As lágrimas invadem os olhos de José, mas ele é forte, de humilhação ele está soterrado. Com sólidas barreiras de orgulho, represa todo o mar que quer irromper. 
Mais alguns passos, se rende ao mundo real. Encurvado sobre si mesmo, escora-se em uma parede qualquer, em um ponto deserto da rua e começa a sufocar, e chorar, e um grito se abafa em seus próprios pensamentos. Quer morrer, quer matar, não. Quer lutar, ah, o que será que ele quer, meu deus? Não é possível! Foi tão difícil tomar essa decisão, por que desistir agora? Recompõe-se. Com as mangas de seu macacão, limpa bem seu rosto. Respira novamente, pensando que a liberdade não há de ser tão ruim assim. O pânico da liberdade deve, é obrigado a ser, mais suportável que o pânico da prisão. Ah, o dinheiro. Aquilo nem dava pra nada meso. Troquei o nada pelo nada, mas agora consigo andar pelas rua e olhar pras pessoa, pelo menos. A moça garçonete... quanto tempo que eu não falava com uma moça tão animada. Mas ela também devia era estar cansada da vida. Acho que a gente percebe isso nos olho dos outro que são como a gente é. 

Faz alguma coisa, José. 

José. José. José.

Ô José! Grita Bonifácio, colega de fábrica de José. Vai marcar o ponto hoje ou não?
Com um clack José marca sua entrada às 9:00 da manhã, segunda-feira, mais um dia naquela fábrica. 
O que poderia ter sido, não foi e José voltou ao que julgou mais seguro – ainda que sombrio. 

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7 comentários:

Maravilha de estreia! A conformação, a revolta; a rotina, a novidade; a alegria apesar de tão pouco; a insegurança, a vontade de ainda dar certo. "Faz alguma coisa,José". Belo jogo de ir e vir você nos deu aqui. E uma reflexão de quebra, que nos induz a revisões internas. Gostei muito!

Texto excelente. A rotina fabril esmagadora de tantos josés. A vontade de libertação, o choro da derrota, a impotência para a grande virada. Bela estreia!

Muito bom este conto. O José sempre nos faz refletir e concordo com Cinthia, esse ir e voltar foi bem elaborado. Gostei ainda mais do final.Quem já não se pegou assim sonhando? Parabéns, Suellen.

Essa questão da vida vivida em torno de um trabalho que consome me provoca demais. Fico pensando nos dias envolvida com a pesquisa e o quanto às vezes só queria parar um pouco. Daí sempre vem um José, para me lembrar que nem todo mundo faz o que gosta. Muitas vezes a vida é consumida em um sem-sentido infinito. Obrigada pelos comentários tão gentis, meninas! :)

Este comentário foi removido pelo autor.

Um conto delicioso de se ler. O enredo, o dilema, a surpresa, tudo... Na vida são pouquíssimos os que não são sufocados diariamente em troca do pão. Vende-se tudo, as forças, o trabalho, a moral, a sinceridade (já que no âmbito de trabalho às vezes a falsidade é a regra), enfim... Sempre acreditei que a rotina bestializa o homem. Lendo todo esse conto lembrei-me de um poema igualmente belíssimo da amiga Cris Dakinis, "Aos distraídos", que disponibilizo aqui como um presente, Suellen, no mais abraços!

"AOS DISTRAÍDOS!

A poesia do dia
Amanhece cedo
Ergue as cortinas e
Toma sol na calçada
Acorda numa revoada
De sanhaços ao vento
Porque a poesia é sonora
Ela nasce en-cantada
Só os incautos ouvem
A poesia do dia...
Distraídos que estão
Do seu diário ganha pão"

(Cris Dakinis).

Obrigada pela bela contribuição Mário, que belo poema para ilustrar a temática do conto! Abraços!

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