Calor escaldante. Ela fez uma lista enorme dos itens que faltavam em casa, trocou o pijama por roupas confortáveis e colocou no ombro a sacola ecológica tamanho G, de alças largas e verdes e corpo de lona estampada de peixes ameaçados de extinção. Dentro da sacola, uma garrafa plástica com água colhida na torneira da cozinha, a carteira e as chaves do apartamento. Supermercado era tortura a qualquer momento, pela manhã, à tarde, à noite, de segunda à sexta, domingo ou feriado, talvez se houvesse algum que funcionasse na madrugada, inventava alternativa a mulher da geladeira vazia. Mas não havia. O jeito era preparar-se para o sufoco do carrinho pesado, das filas, dos papinhos sobre academia, futebol, carnaval, filhos pequenos e malcriados, parentes doentes que precisam de oração, e toda a sorte de assunto que corredores estreitos e prateleiras abarrotadas inspiram.
Foi conformada. A pé, pela sombra, o pensamento no final de semana. Quase lá, reparou no carro azul, que andava mais devagar e mais próximo do cordão do que a maioria dos automóveis. Reparou, assim, com o canto do olho, e, estranhando, apurou o passo. O carro azul apurou também e a acompanhou por alguns metros, até que ela ouviu barulho do vidro descendo. Oi, vai pro centro, topa carona, queria saber um homem jovem, de sorriso aberto. Não vou, obrigada, ela foi dizendo, sem graça. Mas eu te levo para onde estás indo, aonde é? Moço, eu não quero carona e eu tô com pressa, obrigada, respondeu, quase correndo. O vidro subiu e o carro seguiu, dobrou na primeira esquina e pronto, que coisa estranha, o que esse cara pensa, ensinamento bem aprendido da infância foi esse de jamais pegar carona com estranhos, onde já se viu. Ela ainda conferiu a blusa, o short, os tênis, o cabelo – será que havia algo fora do lugar chamando atenção de desconhecido? – antes de retomar o ritmo da caminhada.
Parou para cruzar a rua, observou à esquerda, tudo livre, e à direita, o carro azul estacionado, um arrepio nas costas, uma agonia de repente. Começou a travessia e. Ao acordar lembrou do estrondo e sentiu dor aguda na cabeça. Os punhos e os tornozelos atados, a boca tapada com uma camada grossa de adesivo ou coisa parecida. Não identificava o lugar, reconhecia apenas a sacola com seus pertences atirada no chão e o pedaço do carro azul que conseguia ver pela janela aberta. Tinha berros por dentro, tinha choro e uma raiva funda. Nada disso escapava nem ganhava a rua, porque ela estava, mesmo, bem amarrada e amordaçada. Não queria perder a esperança ou a resistência, mas sabia que viria o pior. Aproveitou todas as brechas que pareciam chances de fuga, sem sucesso. Brigou, mordeu, cuspiu, implorou, desistiu. O homem do carro azul parecia surdo à voz e às reações dela. Ele queria. Ela nunca quis.
Dias depois ela reapareceu. Em pedaços no matagal atrás do supermercado. Encontraram primeiro a sacola ecológica intacta, em seguida o corpo devassado, no bolso a lista: ovos, leite, pão, margarina... Que horror, disseram. Foi dito também que a culpa era dela, não se vai às compras de short curto e regata, tudo à mostra. Não se vai.
sexta-feira, 22 de novembro de 2013
Carona
por Andréia Pires
4 Comentários
4 comentários:
Gosto muito da sua escrita, você sabe. Acho interessante o modo como você aborda os temas sociais e de violência: aborto (aquele impactante das agulhas), estupro, morte. Este é um conto-crônica. Registra um momento, mas por meio da narrativa de conto..Sendo um ou sendo outro, muito bom!
Tu sabes que a tua leitura é sempre uma alegria para mim, Cínthia! Obrigada! :)
Já tinha tido o prazer de ler este. Embora não mencione a city, sabemos quanto nossa cidade pode ser assustadora, apesar de tudo de bom que eu encontro nela, Mais uma vez gostei deste conto como sempre. Abraço Andréia.
pra variar... impactante!
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