Estou aqui. São minhas
estas narinas que se dilatam, estas pupilas que mordem a escuridão. Meus estes
passos indecisos e os tropeços que infligem sons de estouro à madeira do
assoalho. Estou aqui. Com medo de cair no chão de tábuas. Esticando os braços
para afastar o nada, esse medo maior. Dissolvida no breu.
Mas como há de ser que seja eu?
Eu estou aí fora, nessa mesa
farta. Ocupando a boca com qualquer entulho. Com a comida que empurra silêncios
para dentro. Com o vinho que abranda as bochechas enrijecidas pela falta
do riso. Sim, sou eu mesma aí sentada. Reconheço os anéis, os brincos, o
vestido de verão. E ainda assim, ainda assim... Como há de ser que seja
eu?
Parece-se comigo. Apenas isso.
Os traços, os gestos; os cabelos presos no alto. Olhos que nunca se afastam
porque não sabem voltar. Semelhanças. Mas não sou eu. Eu estou aqui. Disforme,
repleta de invisível. Mas aqui.
Essa que está aí brilha. E eu
já me livrei da luz. Quebrei as lâmpadas com o cabo da vassoura. Senti nas
solas dos pés os cacos finos que arrancaram sangue, que arrancaram
lágrimas, que aleijaram a caminhada. Escondi as lamparinas. Joguei no
tanque o querosene. E descartei pela janela os fósforos, fetos abortados. Virei
ausência.
Eu estou aqui. Vendo nos seus
olhos medrosos que ainda há reflexos de luz. Gestando a hora em
que se apagarão e se aceitarão noite opaca. Então, você não
estará mais aí, doendo em mim como cicatriz aberta. E seremos, enfim,
apenas eu neste breu que me toca.
10 comentários:
"Virei ausência." Esta frase lapidar resume o texto. Doloroso e angustiante combate entre a luz que fere e machuca e a escuridão redentora. Mais um grande texto dessa grande autora, com marca da excelência. Parabéns, Cinthia, você consegue mais uma vez tirar o fôlego do seu leitor!
Obrigada pela leitura sempre sensível, Cecilia! :)
belíssimas imagens (Ocupando a boca com qualquer entulho; comida que empurra silêncios para dentro). Breu faz isso mesmo com a gente... texto denso, gostei...
se eu soubesse, escrevia em palavras transparentes e assim, e só assim, eu diria a palavra certa que o seu texto merece
Mais um belo texto dessa talentosa escritora: Cinthia Kriemler. Parabens, Cinthia, e obrigado por presentear-nos com textos maravilhosos.
Obrigada, Geraldo, Fátima e Edweine pelos comentários!
O MÁXIMO!
Olha, menina, só vou te dizer uma coisa: No próximo sarau que eu for, gostaria muito de recitar esse texto. Fiquei tocado, arrepiado. Impossível não sentir a densidade de sua alma sobre cada palavra. Arrebatador!
Emerson, use e abuse! Muito obrigada! 😙
Emerson, use e abuse! Muito obrigada! 😙
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