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sábado, 16 de novembro de 2013

Breu

 

Estou aqui. São minhas estas narinas que se dilatam, estas pupilas que mordem a escuridão. Meus estes passos indecisos e os tropeços que infligem sons de estouro à madeira do assoalho. Estou aqui. Com medo de cair no chão de tábuas. Esticando os braços para afastar o nada, esse medo maior. Dissolvida no breu. 
Mas como há de ser que seja eu?
Eu estou aí fora, nessa mesa farta. Ocupando a boca com qualquer entulho. Com a comida que empurra silêncios para dentro. Com o vinho que abranda as bochechas enrijecidas pela falta do riso. Sim, sou eu mesma aí sentada. Reconheço os anéis, os brincos, o vestido de verão. E ainda assim, ainda assim... Como há de ser que seja eu? 
Parece-se comigo. Apenas isso. Os traços, os gestos; os cabelos presos no alto. Olhos que nunca se afastam porque não sabem voltar. Semelhanças. Mas não sou eu. Eu estou aqui. Disforme, repleta de invisível. Mas aqui. 
Essa que está aí brilha. E eu já me livrei da luz. Quebrei as lâmpadas com o cabo da vassoura. Senti nas solas dos pés os cacos finos que arrancaram sangue, que arrancaram lágrimas, que aleijaram a caminhada. Escondi as lamparinas. Joguei no tanque o querosene. E descartei pela janela os fósforos, fetos abortados. Virei ausência. 
Eu estou aqui. Vendo nos seus olhos medrosos que ainda há reflexos de luz. Gestando a hora em que se apagarão e se aceitarão noite opaca. Então, você não estará mais aí, doendo em mim como cicatriz aberta. E seremos, enfim, apenas eu neste breu que me toca.
 
 

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Cinthia Kriemler
Formada em Comunicação Social/Relações Públicas pela Universidade de Brasília. Especialista em Estratégias de Comunicação, Mobilização e Marketing Social. Começou a escrever em 2007 (para o público), na oficina Desafio dos Escritores, de Marco Antunes. Autora do livro de contos “Para enfim me deitar na minha alma”, projeto aprovado pelo Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal — FAC, e do livro de crônicas “Do todo que me cerca”. Participa de duas coletâneas de poesia e de uma de contos. Membro do Sindicato dos Escritores do Distrito Federal e da Rede de Escritoras Brasileiras — REBRA. Carioca. Mora em Brasília há mais de 40 anos. Uma filha e dois cachorros. Todos muito amados.
todo dia 16


10 comentários:

"Virei ausência." Esta frase lapidar resume o texto. Doloroso e angustiante combate entre a luz que fere e machuca e a escuridão redentora. Mais um grande texto dessa grande autora, com marca da excelência. Parabéns, Cinthia, você consegue mais uma vez tirar o fôlego do seu leitor!

Obrigada pela leitura sempre sensível, Cecilia! :)

belíssimas imagens (Ocupando a boca com qualquer entulho; comida que empurra silêncios para dentro). Breu faz isso mesmo com a gente... texto denso, gostei...

se eu soubesse, escrevia em palavras transparentes e assim, e só assim, eu diria a palavra certa que o seu texto merece

Mais um belo texto dessa talentosa escritora: Cinthia Kriemler. Parabens, Cinthia, e obrigado por presentear-nos com textos maravilhosos.

Obrigada, Geraldo, Fátima e Edweine pelos comentários!

Olha, menina, só vou te dizer uma coisa: No próximo sarau que eu for, gostaria muito de recitar esse texto. Fiquei tocado, arrepiado. Impossível não sentir a densidade de sua alma sobre cada palavra. Arrebatador!

Emerson, use e abuse! Muito obrigada! 😙

Emerson, use e abuse! Muito obrigada! 😙

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