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quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Uma Manhã no Museu

         
         Fevereiro de 2013, primeiro dia de carnaval. Uma roda de amigos, em um boteco, na Lapa...
 – Cara, é uma história mais louca que a outra... E vocês lembram quando a gente fomos pra Petrópolis, na sétima série?
 – Porra, a gente fomos, Adalberto?
– Ué, e não fomos?
– Me arrependo amargamente de ter te passado cola de Português em todas as séries... Desce mais uma gelada aí, garçom, porque depois dessa...
 – Ah, fala sério, Carlinhos, isso aqui é papo informal!
Todos concordam com Cremilda que, apesar do nome, era a mais linda daquele círculo de velhos amigos. Quando mais nova, era chamada de tábua.
– Santo bullying... Não fossem as nossas brincadeiras, hoje a Cremilda não teria esses belos peitos siliconados... – Assanharam-se os rapazes, tão logo Cremilda chegou.
         Entre umas e outras goladas e fisgadas nos petiscos, as histórias daquela turma fluíam saborosamente, ao som das batucadas carnavalescas que tomavam as ruas.
– Aquela viagem foi uma mesura... – Gracejou Alessandra.
– Não tem como se esquecer de Petrópolis. Sétima série, 1989: a famosa viagem ao Museu Imperial... – Rememora Carlinhos, envolto a um ar nostálgico.
 – Carlinhos Peidorreira, tu ganhou esse apelido lá!
– É, e depois pra disfarçar aquele mico, ficou inventando um monte de histórias, uns papos brabos... Virou até caso de psicólogo, né, Peidorreira?
– Eu não inventei nada, gente. – Afirmou, numa seriedade nada condizente com o momento. – Eu conversei com ele!
         Entre risos aprisionados e olhares espantados pela, ainda, convicta resposta do antigo colega de classe, surge um comentário infeliz:
– Eu nem me lembro desse caso direito, tava agarrando a Lurdinha no jardim do Museu... O que rolou mesmo?
         Lourdinha lança um olhar reprovador para Sávio. Agora, a “iniciadora” da turma era uma “mulher de Deus”, daquelas que trocam as camisinhas XL por bíblias em miniatura na bolsa. Aceitou o convite daquela reunião “por um ato extremo de bondade”, desde que ninguém a obrigasse beber cerveja, brincar de salada mista e levantar seu passado profano.
 – Vou lembrar a todos vocês o que realmente aconteceu comigo naquela manhã no museu...

        1989

O Museu Imperial era a primeira viagem escolar daquela turma, recompensando o bom rendimento em sala de aula.
– Esta é a Coroa do Império do Brasil, fabricada pelo ourives Carlos Martin. Adivinhem quem usou esta coroa? – Apresentou a guia, entrosando-se com as crianças que observavam boquiabertas o brilho da coroa imperial.
– Alguém muito rico!
         – Seu burro, claro que foi alguém muito rico, essa coroa é de ouro!
         – Minha avó também tem uma joia de ouro e não é rica, tá?
         O cofre dos Orléans foi a grande atração.
– Que deve ter dentro daquele cofre? A senhora sabe, professora?
– Sei não, Cremilda... Por que não usa sua imaginação, hein?
– Cofre é pra guardar dinheiro, sua tábua! – Ataca Sávio.
         E dispararam as gargalhadas. Até que um fenômeno sobrenatural invadiu aquele meio...
– O cadáver de D. Pedro tá enterrado aqui? – Indagou um dos alunos, aparentemente zonzo.
Um odor jurássico tomou conta das narinas de todos. A jovem professora, constrangida, percebeu que tinha de tomar uma atitude enérgica.
– Quem peidou? Eu exijo que o culpado levante a sua mão amarela, agora!
         Silêncio... Um olhando para a cara do outro... Carlinhos cerrou os olhos e, não resistindo, entregou-se da pior maneira possível. O que teria de ser discreto amplificou-se pela acústica privilegiada que os salões do museu proporcionava.
– Foi o Carlinhos! Carlinhos é um peidorreira!
– Carlinhos Peidorreira!
         Os colegas assuavam e riam do pobre flatulento que, trêmulo, cobria o rosto com as mãos.
– Carlinhos!... Você... Você não tem respeito não?
– Tenho só dor de barriga agora, professora...
– Vá ao banheiro, siga por aquele corredor e vire à direita. – Orientou a guia.
         Carlinhos saiu correndo dali, vermelho como o quê. Entrou no banheiro secando as lágrimas silentes. Acomodou-se em um dos lavabos, com o rosto mergulhado nas mãos. “Quanto vexame, maldita fritada do café da manhã...”. Até que ouviu um estrondo próximo à sua porta. Assustado, manteve-se quieto, sentado à privada.
– Santa Maria, vim parar na boca do inferno! Que odor, que odor! Serão meus sovacos?
         Era uma voz masculina, de sotaque português. Curioso, Carlinhos encerrou os serviços fisiológicos e abriu a porta, lentamente.
– Que diabos faz em meu palácio, puto?
         D. Pedro II arrancou a espada da bainha, apontando para o menino. Carlinhos abriu um sorriso nervoso, fixado naquela figura icônica.
– Puto não é um nome feio pra ser dizer, senhor?
– Ora, pois! Feio é invadir meu palácio e ainda infestá-lo com este cheiro de cagalhão!
– Seu figurino é excelente, parabéns. E o senhor é bem divertido também.
– Quem pensas que sou, seu puto? – Cofiando o denso bigode.
– Um daqueles atores que se veste de palhaço, Mickey, um monte de personagens, só pra fazer as crianças se sentirem bem em lugares chatos e tristes, como num museu, por exemplo...
         D. Pedro II recua a espada, notando a inocuidade do menino.
– Ora, pois, sou o imperador... Vim de longe, de um tempo distante. Acionei a máquina do tempo para que me transportasse de volta ao meu adorado palácio de veraneio, pelos idos de 1880... Contudo, pelo o que vejo... Tudo se perdeu, tudo!
– E de que tempo o senhor vem?
– O tempo oscila em demasia para mim, rapagote. Vou, volto, cá e acolá... Da última vez, creio que tenha andado pelos idos do ano 2000... Não me recordo ao certo, sinto uma forte vertigem... Ora, lembro-me que parecia Sodoma, em plena balbúrdia e depravação! Miúdo, a conversa é prazerosa, todavia, não tenho muito tempo. Preciso ir até o meu quarto tirar uma pestana antes da próxima viagem. Até mais ver!
         Carlinhos acena um adeus, sorridente. A presença daquele personagem fez com que seu ânimo se elevasse novamente. D. Pedro II se retira do banheiro

2013

“... Então eu voltei para o salão, depois fomos aos quartos do imperador, da princesa, de todos! E nada de encontrá-lo... E tem mais, vocês lembram que a guia garantia pra gente que não tinha nenhum personagem pra alegrar as crianças!”
– Que viagem, Carlinhos, que viagem... – Pondera Cremilda – A professora pediu pra eu usar a imaginação com o cofre, e quem usou foi você! Você teve um transtorno, sua imaginação criou um pretexto para se sentir alegre de novo. É super natural entre crianças esse lance de amigo imaginário...
– Só porque se formou em Psicologia vem com esse discurso... Bem, me deem um minuto, vou ao banheiro e já volto.
– Ih, lá vai o Peidorreira!
         Era de praxe: bastava entrar no banheiro, seja qual fosse, ou quando, ou como, que aquela figura imperial reabitava sua memória, de modo que o intrigava cada vez mais.
         Seus amigos estavam a gozá-lo à mesa quando Alessandra aponta, intrigada, para um transeunte n’outra calçada, em meio a multidão extasiada.
– Gente, aquele homem tá fantasiado de D. Pedro II, não tá?
– Ah, galera, sem neura... É Carnaval, se esqueceram?
– Olha, ele parece bem perdidão... Gente, que figura!
         Lurdinha, atônita, solta um “Em nome de Jesus, tá amarrado” e vira um copo de cerveja de uma só vez.
Carlinhos retorna do banheiro e logo é surpreendido pelo galhofeiro Adalberto. – Peidorreira, adivinha só quem passou por ali agora? 

(LOHAN LAGE PIGNONE)




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