Fevereiro
de 2013, primeiro dia de carnaval. Uma roda de amigos, em um boteco, na Lapa...
– Cara, é uma história mais louca que a
outra... E vocês lembram quando a gente fomos pra Petrópolis, na sétima série?
– Porra, a gente fomos, Adalberto?
– Ué, e não fomos?
– Me arrependo
amargamente de ter te passado cola de Português em todas as séries... Desce
mais uma gelada aí, garçom, porque depois dessa...
– Ah, fala sério, Carlinhos, isso aqui é papo
informal!
Todos concordam com
Cremilda que, apesar do nome, era a mais linda daquele círculo de velhos
amigos. Quando mais nova, era chamada de tábua.
– Santo bullying... Não
fossem as nossas brincadeiras, hoje a Cremilda não teria esses belos peitos
siliconados... – Assanharam-se os rapazes, tão logo Cremilda chegou.
Entre
umas e outras goladas e fisgadas nos petiscos, as histórias daquela turma
fluíam saborosamente, ao som das batucadas carnavalescas que tomavam as ruas.
– Aquela viagem foi uma
mesura... – Gracejou Alessandra.
– Não tem como se
esquecer de Petrópolis. Sétima série, 1989: a famosa viagem ao Museu
Imperial... – Rememora Carlinhos, envolto a um ar nostálgico.
– Carlinhos Peidorreira, tu ganhou esse
apelido lá!
– É, e depois pra
disfarçar aquele mico, ficou inventando um monte de histórias, uns papos
brabos... Virou até caso de psicólogo, né, Peidorreira?
– Eu não inventei nada,
gente. – Afirmou, numa seriedade nada condizente com o momento. – Eu conversei
com ele!
Entre
risos aprisionados e olhares espantados pela, ainda, convicta resposta do
antigo colega de classe, surge um comentário infeliz:
– Eu nem me lembro desse
caso direito, tava agarrando a Lurdinha no jardim do Museu... O que rolou mesmo?
Lourdinha
lança um olhar reprovador para Sávio. Agora, a “iniciadora” da turma era uma
“mulher de Deus”, daquelas que trocam as camisinhas XL por bíblias em miniatura
na bolsa. Aceitou o convite daquela reunião “por um ato extremo de bondade”,
desde que ninguém a obrigasse beber cerveja, brincar de salada mista e levantar
seu passado profano.
– Vou lembrar a todos vocês o que realmente
aconteceu comigo naquela manhã no museu...
1989
O Museu Imperial era a
primeira viagem escolar daquela turma, recompensando o bom rendimento em sala
de aula.
– Esta é a Coroa do
Império do Brasil, fabricada pelo ourives Carlos Martin. Adivinhem quem usou
esta coroa? – Apresentou a guia, entrosando-se com as crianças que observavam
boquiabertas o brilho da coroa imperial.
– Alguém muito rico!
– Seu burro, claro que foi alguém
muito rico, essa coroa é de ouro!
– Minha avó também tem uma joia de
ouro e não é rica, tá?
O
cofre dos Orléans foi a grande atração.
– Que deve ter dentro
daquele cofre? A senhora sabe, professora?
– Sei não, Cremilda...
Por que não usa sua imaginação, hein?
– Cofre é pra guardar
dinheiro, sua tábua! – Ataca Sávio.
E
dispararam as gargalhadas. Até que um fenômeno sobrenatural invadiu aquele
meio...
– O cadáver de D. Pedro
tá enterrado aqui? – Indagou um dos alunos, aparentemente zonzo.
Um odor jurássico tomou
conta das narinas de todos. A jovem professora, constrangida, percebeu que
tinha de tomar uma atitude enérgica.
– Quem peidou? Eu exijo
que o culpado levante a sua mão amarela, agora!
Silêncio...
Um olhando para a cara do outro... Carlinhos cerrou os olhos e, não resistindo,
entregou-se da pior maneira possível. O que teria de ser discreto amplificou-se
pela acústica privilegiada que os salões do museu proporcionava.
– Foi o Carlinhos! Carlinhos
é um peidorreira!
– Carlinhos Peidorreira!
Os
colegas assuavam e riam do pobre flatulento que, trêmulo, cobria o rosto com as
mãos.
– Carlinhos!... Você...
Você não tem respeito não?
– Tenho só dor de barriga
agora, professora...
– Vá ao banheiro, siga
por aquele corredor e vire à direita. – Orientou a guia.
Carlinhos
saiu correndo dali, vermelho como o quê. Entrou no banheiro secando as lágrimas
silentes. Acomodou-se em um dos lavabos, com o rosto mergulhado nas mãos.
“Quanto vexame, maldita fritada do café da manhã...”. Até que ouviu um estrondo
próximo à sua porta. Assustado, manteve-se quieto, sentado à privada.
– Santa Maria, vim parar
na boca do inferno! Que odor, que odor! Serão meus sovacos?
Era
uma voz masculina, de sotaque português. Curioso, Carlinhos encerrou os
serviços fisiológicos e abriu a porta, lentamente.
– Que diabos faz em meu
palácio, puto?
D.
Pedro II arrancou a espada da bainha, apontando para o menino. Carlinhos abriu
um sorriso nervoso, fixado naquela figura icônica.
– Puto não é um nome feio
pra ser dizer, senhor?
– Ora, pois! Feio é
invadir meu palácio e ainda infestá-lo com este cheiro de cagalhão!
– Seu figurino é
excelente, parabéns. E o senhor é bem divertido também.
– Quem pensas que sou, seu
puto? – Cofiando o denso bigode.
– Um daqueles atores que
se veste de palhaço, Mickey, um monte de personagens, só pra fazer as crianças
se sentirem bem em lugares chatos e tristes, como num museu, por exemplo...
D.
Pedro II recua a espada, notando a inocuidade do menino.
– Ora, pois, sou o
imperador... Vim de longe, de um tempo distante. Acionei a máquina do tempo para
que me transportasse de volta ao meu adorado palácio de veraneio, pelos idos de
1880... Contudo, pelo o que vejo... Tudo se perdeu, tudo!
– E de que tempo o senhor
vem?
– O tempo oscila em
demasia para mim, rapagote. Vou, volto, cá e acolá... Da última vez, creio que
tenha andado pelos idos do ano 2000... Não me recordo ao certo, sinto uma forte
vertigem... Ora, lembro-me que parecia Sodoma, em plena balbúrdia e depravação!
Miúdo, a conversa é prazerosa, todavia, não tenho muito tempo. Preciso ir até o
meu quarto tirar uma pestana antes da próxima viagem. Até mais ver!
Carlinhos
acena um adeus, sorridente. A presença daquele personagem fez com que seu ânimo
se elevasse novamente. D. Pedro II se retira do banheiro
2013
“... Então eu voltei para
o salão, depois fomos aos quartos do imperador, da princesa, de todos! E nada
de encontrá-lo... E tem mais, vocês lembram que a guia garantia pra gente que
não tinha nenhum personagem pra alegrar as crianças!”
– Que viagem, Carlinhos,
que viagem... – Pondera Cremilda – A professora pediu pra eu usar a imaginação
com o cofre, e quem usou foi você! Você teve um transtorno, sua imaginação
criou um pretexto para se sentir alegre de novo. É super natural entre crianças
esse lance de amigo imaginário...
– Só porque se formou em
Psicologia vem com esse discurso... Bem, me deem um minuto, vou ao banheiro e
já volto.
– Ih, lá vai o
Peidorreira!
Era
de praxe: bastava entrar no banheiro, seja qual fosse, ou quando, ou como, que
aquela figura imperial reabitava sua memória, de modo que o intrigava cada vez
mais.
Seus
amigos estavam a gozá-lo à mesa quando Alessandra aponta, intrigada, para um
transeunte n’outra calçada, em meio a multidão extasiada.
– Gente, aquele homem tá
fantasiado de D. Pedro II, não tá?
– Ah, galera, sem neura...
É Carnaval, se esqueceram?
– Olha, ele parece bem
perdidão... Gente, que figura!
Lurdinha,
atônita, solta um “Em nome de Jesus, tá amarrado” e vira um copo de cerveja de
uma só vez.
Carlinhos retorna do
banheiro e logo é surpreendido pelo galhofeiro Adalberto. – Peidorreira, adivinha
só quem passou por ali agora?
(LOHAN LAGE PIGNONE)
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