DOIS NO RIO
A lancha afasta-se da margem lentamente, levando os dois
homens. Um deles, arqueado na popa da embarcação, puxa a corda que aciona o
motor. Uma, duas, três vezes... O sol do meio da tarde brilha no espelho de
suor do seu rosto. Na quinta tentativa, a combustão joga no ar o cheiro forte
de óleo queimado e detona o mecanismo que movimenta a hélice. Um pequeno tranco
obriga o outro, sentado no banco do meio, virado para a proa, a crispar as mãos
nas bordas laterais. Logo as crianças que nadam em algazarra perto da margem e
as mulheres que lavam roupa nas pedras lisas e irregulares, conversando
animadamente, vão sumindo no fim do triângulo de ondulações na pele da água.
Agora, somente os dois.
– Há quanto tempo não fazia isto... Ah, este cheiro
de natureza é do que mais sinto falta em Sampa. Isto é que é vida!
Ergue a cabeça e, ainda sentado, abre os braços e
fecha os olhos; no mesmo movimento, respira fundo, deixando que o ar puro lhe
refresque os pulmões.
– Não parece que dá tanta importância. Quase dez anos
sem aparecer... Aliás, sem mandar sequer notícias. Os amigos caipiras que se
danem! Agora você é importante, gente da cidade grande, “Sampa”...
Jonas quase teve de gritar para que a voz vencesse o vento
e o ruído do motor e chegasse ao companheiro. A mão direita controlando a barra
de direção do leme. Os olhos, conhecedores do caminho, antecipam a rota predefinida.
O barco no meio do rio, deixando para trás pequenas canoas com seus condutores,
pescadores locais, a maioria valendo-se de remos. Um ou outro, conhecido ou não,
acena, sorri, diz “boa tarde”. William, o da frente, retribui com entusiasmo.
Jonas parece não dar importância, concentrado em seu mister.
– Que nada, amigo. A gente nunca esquece as raízes. E
se não vim antes foi porque os negócios não permitiram. Você sabe que o boi só
engorda sob o olhar do dono...
– Sei, sei... Esqueci que estava falando com um grande
empresário...
– Quem me dera! Sou um simples sócio de uma pequena fábrica
de papéis reciclados. Mas não tenho do que me queixar. E você, o que tem feito?
Então virou-se, meio desajeitado, posicionando-se na direção
da popa. Assim podiam conversar melhor, olhando-se de frente.
– Continuo naquela vidinha de sempre, me defendendo na
oficina. Dá pra ir levando... Pensa que esta lancha é minha? Agora sou eu que
digo “quem me dera”. Emprestei de um cliente, amigo meu. – De repente, com
olhar investigativo, através dos óculos de sol: – Mas, mudando de assunto, você
está aí, todo prosa, à vontade na lancha... Por acaso aprendeu a nadar? Você
morria de medo de água e sempre ficava na beirinha do rio, só até onde dava pé,
enquanto eu e os outros garotos apostávamos pra ver quem atravessava primeiro.
– E você sempre ganhava, campeão! Eu ficava morrendo de
inveja. Mas nadar nunca foi meu forte mesmo. Até pensei em fazer um curso de
natação, mas nunca dá tempo. Em São Paulo tudo é muito longe, e é uma correria louca...
Só não estou tremendo de medo porque esta lancha
me parece segura e sei que você é experiente e cuidadoso. Mas
não seria melhor a gente pensar em voltar? Se bem me lembro, a Cachoeira da
Fumaça não está muito longe, né?
– Calma. Ainda faltam uns três quilômetros. E quero lhe
mostrar uma coisa lá perto.
– Me mostrar uma coisa? Deve estar tudo muito
diferente. Nossa cidadezinha acabou se desenvolvendo, hein? Amanhã vou pela
estrada, pra conhecer o complexo turístico.
– Sim, mudou muito. Mas a cachoeira continua a
maravilha de sempre! Vem gente de toda parte pra ver. Afinal, não é qualquer
rio que tem um salto de mais de oitenta metros!
– Isto aqui é incrível mesmo! Quase não me lembrava mais
desta sensação de liberdade que é deslizar sobre as águas, o vento batendo na
cara... Ainda bem que você me convidou.
– É que eu acho que a gente tem muita coisa pra
conversar. Boa parte da infância e toda a adolescência juntos...
– E da mocidade também, é bom lembrar.
– Sim, boa parte da mocidade. Você estava naquela festa
de fim de ano, promoção da nossa turma do terceiro colegial, quando conheci a
Juliana. Acompanhou nosso namoro, o noivado, foi padrinho de casamento...
– Claro, estava em tudo quanto era festa! – Joga de novo
a cabeça para trás e solta uma gargalhada – Enquanto você se amarrava num
namoro sério, eu preferia conhecer outras garotas, descobrir os segredos
delas...
William ri com gosto, embora o aumento da correnteza comece
a preocupá-lo. Mas é Jonas quem fala.
– Tem uma coisa que queria lhe dizer... Sabe, durante
esse tempo todo que você ficou fora, eu vinha várias vezes aqui, navegar neste
rio. Ficava refletindo, matutando... – Ajeita os óculos, passa a mão pela
testa, limpando o suor. – E sempre pensava em você, que não mandava notícias...
E você não imagina o quanto desejei estar em sua companhia neste rio, como
agora.
– Iiih, cara! Sei não... Este papo está tomando um rumo
esquisito... Será que você mudou de lado?
Ri, debochado, tentando desvendar a expressão do amigo.
Esforça-se para se mostrar tranquilo, mas a conversa agora estranha, a
correnteza, a proximidade da cachoeira...
Jonas aperta os olhos atrás das lentes opacas. A mão direita,
suada, comprime a haste emborrachada da direção. Então faz uma manobra mais
brusca, quase fazendo entrar água no bote.
– Que que é isso, cara?! Tá querendo nos afundar? Só porque
tenho medo de água vai tirar onda com minha cara? Azar o seu. Vai me fazer
sujar o barco... Não me responsabilizo.
Agora sorri forçado, enquanto o outro permanece impassível.
– E aquele dinheiro? O que você fez com o dinheiro?
O tom da voz de Jonas agora é outro. Metálico, seco. Mais
uma mudança brusca na direção da lancha e no rumo do diálogo. A curva fechada
deixa a água a dois dedos de entrar no bote. William sente a cabeça girar,
agarra-se com mais força nas laterais.
– Dinheiro?! Que dinheiro? Não sei do que você está falando...
Outra curva fechada. A água respinga para dentro da lancha.
– O dinheiro que lhe emprestei, lembra? Você disse que
ia resolver uns negócios em São Paulo e voltava em menos de um mês. Esperei
quase dez anos...
William empalidece. Como pôde se esquecer? O tempo e
as novidades da cidade grande, o início conturbado... Agora se lembra, o
dinheiro, claro.
– Ah, Jonas... Poxa, me lembrei... Olha, aconteceu
tanta coisa naquele mês que acabei não tendo como voltar nem entrar em contato
com você. Quando a gente retornar à cidade eu lhe conto. Faço questão de
explicar tudo. E vou lhe pagar com juros, pode ter certeza. Não me lembro mais do
valor...
– Esqueça, amigo! Não faço mais conta, não. Precisei muito
dele, mas agora não me interessa mais.
– Não, não! Vou lhe pagar, sim. E corrigido. Amanhã mesmo
providencio isso, pode deixar.
– Não quero o dinheiro, já disse! Não preciso mais. Era
pra levar a Juliana até Riachuelo, onde ela ia passar as últimas semanas da
gravidez. Você sabia... Vendi até meu Passat pra levantar a grana.
– Caramba! É mesmo, eu me lembro... Sinto muito. Mas
acabei levando um calote e não tive como lhe pagar no prazo prometido. Aí senti
vergonha de voltar e fui ficando, ficando... Você entende, né? E seu filho?
Deve estar um garotão, hein?! Tem um só?
Nesse momento o motor começa a ratear. Vai
engasgando, apagando aos poucos, até parar de vez. A correnteza apodera-se do
barco.
William sente a umidade na testa e nas mãos, que
escorregam pelo metal. Os olhos, arregalados, já não escondem o desespero.
– Diabos! O que foi agora? A gente está perto da cachoeira
e essa joça inventa de enguiçar?!
Jonas parece não se alterar. Levanta os óculos
escuros com a mão direita, colocando-o na testa. Seus gestos são precisos,
quase serenos.
– Acho que acabou a gasolina. Esqueci de completar...
– E, de cenho franzido, olhando nos olhos de William:
– Meu filho morreu no parto. Não tive condições de
levar a Juliana pra um hospital com mais recursos. O Dr. Pedro fez o que pôde,
mas a ambulância demorou a chegar e a cesariana só salvou a vida da coitada.
– Poxa, lamento muito. Mas... a cachoeira... A
correnteza está muito forte...
– Queria lhe mostrar aquele morro ali na frente.
Lembra- se dele? Dali até a cachoeira tem menos de um quilômetro. Uma vez eu
vim até aqui numa canoa velha. Quando cheguei na direção do morro, saltei e
consegui nadar até a margem. De lá fiquei olhando a canoa sumindo na cortina de
fumaça d’água... Ah, a Juliana nunca me perdoou. Logo depois ela foi embora pra
casa dos pais, em Minas, e não quis mais saber de mim.
Com a cabeça entre os joelhos, William balbucia:
– Não tive culpa, juro! Eu ia voltar, mas não pude...
Me perdoe...
E erguendo o tronco e passando as mãos no rosto encharcado,
com a voz se liquefazendo:
– Me ajude, por favor! Não me deixe aqui...
Jonas fica de pé no banco traseiro da lancha,
equilibrando- se com as pernas um pouco abertas. Tira um saco plástico de um
dos bolsos da bermuda e põe dentro dele os óculos e a carteira. Depois coloca
tudo por dentro da sunga, na parte da frente. Volta-se mais uma vez para o
outro e o olha fixamente.
– É claro que perdoo, amigo. Não sou homem de guardar
mágoa... Olha, este é o ponto. Vou pular aqui. É sua única chance também. Tem
coletes salva-vidas em algum lugar aí embaixo. É só colocar um e ir batendo os braços
e as pernas.
E observando os tremores no corpo arqueado à sua frente,
agora a cabeça entre as pernas:
– A Juliana foi o único amor da minha vida, sabia? – Balança
a cabeça de um lado para o outro e, estalando a língua três, quatro vezes, com
ar de desprezo: – Dez anos... Se tivesse feito o curso de natação...
Dá um salto e mergulha na água turva. A cabeça aponta
a uns cinco metros da lancha, à direita. Com braçadas vigorosas, debate-se
contra a correnteza até alcançar a margem.
Edelson Nagues
Do livro Humanos (Editora Scortecci).
3 comentários:
Muito bom.
Já o conhecia, mas foi ótimo reler esse conto. Muito bom!
Já o conhecia, mas foi ótimo reler esse conto. Muito bom!
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