Fim de tarde na grande metrópole.
Um acidente
envolvendo um caminhão
causava retenção no trânsito, gerando um
engarrafamento que
parecia dar um
nó na cidade.
Além do monóxido
de carbono, a briga
das buzinas tornava tudo
ainda mais
irritante. E, como diz um velho amigo niilista, filósofo de botequim,
tudo sempre
pode piorar. E foi aí
que o carro
morreu.
– #$@%*@!!!!!! O
carro morreu. – o sujeito
foi mais categórico
do que médico
desenganando paciente terminal.
– Por quê? Como assim, morreu? – ela,
que de carro
só conhecia volante
e rodas, perguntou, mais
assustada pela fatalidade
do termo do que
propriamente por perceber
o transtorno criado.
– Não sei.
– a voz dele denotava impaciência, e tinha
o tom irascível
que ele
manifestava em situações
de estresse. – Acho que
não pode ser
a bateria. Troquei no mês passado. Também não é falta de combustível.
Acabei de abastecer. Deve ser
o motor de arranque.
Bem que o Alemão me avisou.
Devia ter trocado.
– a cada frase,
o tom de voz
ia subindo, assim como
o carro fizera antes
de falecer, digo, morrer.
– #@#%*&##@!!!!!!!!!
– O que é que a gente vai fazer agora? – perguntou ela,
arrependendo-se na hora por ter proferido uma questão tão complexa.
– Eu não mereço!#+*$*#@! Não
é justo! Que
@#$@#!!!!!! – vociferava ele, enquanto batia com
as duas mãos no painel.
Praticamente um Incrível
Hulk em versão
motorizada. A cada tentativa
de ressuscitar o motor,
todas as luzes do painel
se acendiam para, imediatamente,
se apagarem, frenesi dos estertores
de um motor
fatigado. Os ruídos emitidos pelo veículo tinham um ritmo de agonia moribunda
que chegava a ser
engraçado. Um
lamento triplo,
como uma tosse
seca, e um
suspiro. Um
lamento triplo,
e outro suspiro.
– Não é melhor ligar para o reboque? – sugeriu ela, tentando ajudar.
– Liga, #@$%#!
– bradou ele, jogando a carteira com os
telefones no colo
dela, que, nervosa
diante do caos
que se formava, teve um histérico acesso de riso.
– Para de rir! PARA DE RIR! Qual é a graça?
Ela, tentando inutilmente conter
a crise que
a acometia nos momentos
mais difíceis, emendou com choro, que se tornava grotesco
porque se intercalava com as gargalhadas.
Um carro
enguiçado na subida de uma ponte, uma mulher
em crise
nervosa, um
homem impaciente
aos berros e um
trânsito caótico.
Isso para não mencionar os comentários dos carros
que passavam por
eles:
– Brincadeira, hein?!
– Parou mal pra caramba,
amigo... – e, em
meio ao burburinho,
as palavras encorajadoras do marido:
– Para de chorar, que você está me
irritando.
Enquanto tentava ligar para o serviço de assistência a fim
de solicitar o reboque,
ouvia a sinfonia nada
harmônica de buzinas,
paralela à mensagem-padrão de
atendimento.
– E aí, atenderam?
– Já vão atender – dizia ela, agora uma
Amélia pós-moderna, capaz de concordar com tudo o que ele dissesse, só
para acalmá-lo.
– Boa-noite, senhora. Qual o seu nome?
– Olha. O carro morreu aqui
na subida da ponte,
e eu preciso
solicitar um reboque... Estamos no meio
do trânsito, e...
– Qual seu nome e CPF,
por favor?
– a atendente não
a deixou terminar a frase.
– Vão mandar a @#$# do reboque ou não vão? – gritava ele,
acrescentando um tenor
em dó
maior às buzinas,
que faziam coro
aos seus berros
e ecoavam lá e cá.
– Fulana de tal, número tal. Olha só: nós estamos
em lugar
perigoso, e...
– Entendo, senhora, mas eu tenho de preencher o formulário de solicitação.
– E aí? – novo grito.
– Vão mandar, sim –
dizia ela ao marido,
agora uma espécie
de mediadora entre a atendente e ele,
irracional pela
raiva.
– Senhora, não estou conseguindo ouvi-la. A senhora
pode acalmar o cavalheiro,
por favor?
Estou
tentando, pensava ela. Como estou!...
– Senhora –
prosseguiu a atendente – o que
a senhora é do titular do
seguro? – Taí! Boa pergunta, pensou ela, ainda mais àquela altura...
– Eu
sou mulher dele. O carro
está no meu nome.
– Senhora, vou estar transferindo a sua
ligação, e...
– Não! Pelo amor de Deus, não sai da linha!
– o tom
da mulher beirava o desespero.
– Senhora, o procedimento...
– Eu não quero
“procedimento”, moça, eu quero ajuda – ela
implorava, clamando que aquela
tábua-de-salvação-telefônica lhe
trouxesse alguma saída.
– Qual
o número do chassi
do veículo, senhora? – ela pareceu
se comover.
– Hã? Chassis?
– será que as atendentes
agora falavam Francês?
Não. Se fosse Francês,
ela entenderia. Até
Grego. Talvez
aquilo fosse Aramaico.
Ou alguma linguagem
de outra dimensão.
Essa não! Enquanto ela se
perdia em considerações
linguístico-automobilísticas, a ligação
havia caído. Talvez
a ET-atendente tivesse desistido dela, afinal.
– Caiu a ligação,
– informou ela, com
o ar de quem
carregará mais uma culpa
pela eternidade.
– Caiu???Como
assim, caiu?! – berrava o sujeito.
– Não
sei, dizia ela, examinando o telefone, que estava desligado. –
Acho que a bateria acabou, informou, temendo acrescentar mais essa
falta grave
aos pecados que
havia cometido. Algo cármico, de encarnações pregressas, talvez
pudesse explicar aquele
inferno dantesco
em que
o seu dia
se havia transformado.
– Liga
de novo – o sujeito
jogou o celular em
seu colo.
– Usa
o meu.
– Ahnnn. Moça,
eu liguei ainda
agora...
...
Ligação feita, reboque
agendado. A paz começava a querer retornar. E foi então que ele proferiu a frase
lapidar, solene
como um
oráculo das tragédias
gregas:
– Você vai ter que encostar o carro.
– Hã? Eu?! –
ela não
acreditava no que ouvia. Ela, que
precisava de copiloto em pista de parques
de diversões; ela,
que ficava atolada naqueles carrinhos que
batem uns nos outros,
e que às vezes
tinha pesadelos
homéricos em
que se via ao
volante de um
carro, sem
saber conduzi-lo. Mas
isso era
muito pior
do que os seus
pesadelos mais
tenebrosos. – Mas eu não
sei nem ligar
o carro.
– É isso ou empurrar, aqui na subida. Se você errar, o carro vai descer, e a gente vai
bater no carro
de trás. Vou contar
até três.
No “três”, você
solta o freio
de mão, e joga
o carro pra direita.
– Mas eu...
– 1, 2..3!!!! Solta o freio
de mão!!!
– Não consigo. – dizia ela,
não sabendo se era
para cima, para baixo ou para trás que
deveria fazer força.
– Você não sabe soltar o freio???@#%&#!!
– Não! Como é? Ah, consegui.
– Vira o volante pra direita ao mesmo
tempo.
– Tá... – ela tremia e suava, desesperada.
– Vai! Continua!
– gritava ele.
– O volante não vai
mais... – não
podia chorar, e muito menos
rir.
– Tá. Agora desfaz o jogo
– gritou ele, enquanto
empurrava.
– Ahnn???
– Desfaz o jogo, #@@#%$!
– O que é isso? – perguntou, desesperada. Ela sabia o que
era jogo-duro, jogo
sujo, jogo
marcado, e até jogo
fechado. Mas como
desfazer um
jogo que
ela não
sabia ter feito?
– Vira pro outro lado. Você virou pra direita, agora vira pra esquerda! @##@!!!!
– Tá. –
obedeceu ela, que
nunca pensara que
um volante
pudesse ser tão
pesado.
– Agora bota reto.
Como se bota um volante reto, meu Deus? – mas isso ela não teve coragem de perguntar. Não devia ter matado aula de geometria.
Volante reto.
Volante reto.
Quase um
mantra.
– Eu disse RETO!!!
– Eu não sei como se
faz isso!
Os curiosos
olhavam e riam, e ele gritava,
defendendo-se:
– Ela não
sabe dirigir!
Isso era tudo o que ela precisava: parecia que
eles estavam naquela situação por
alguma incompetência ou
erro dela,
o que agora
vinha se tornando muito
comum. Quando
irritado, ele agia de um modo que fazia parecer que a culpa era sempre
dela, até em
relação a coisas
imponderáveis ou
aleatórias. Não preciso
passar por isso! Não preciso passar por isso!,
bradava a voz interior,
liberta do caos
circundante.
Do meio do apocalipse em que aquele trecho se transformara, surgiu um
ambulante-faz-de-tudo cheirando a bebida.
Como aqueles
maltrapilhos dos contos
de fadas, aquele
eremita contemporâneo
prontificou-se a fazer o carro
pegar no tranco. Outra expressão
para checar no Aurélio,
pensou ela, antes
de perceber, com
os sucessivos trancos,
aquilo a que
ele se referia. O sujeito
trazia mais quinquilharias
dependuradas do que militar
em festa
de gala. Carregadores
de celular, guarda-chuvas
e biscoitos de polvilho
adornavam-no do pescoço à cintura.
– Fica calma,
dona, que
eu vou dar um jeito nisso.
– o mau-hálito do sujeito deixou-a embriagada. É bom
que eu
relaxo, pensou ela, enquanto
catava o Lexotan no fundo da bolsa.
–
É só mais
um pouquinho, dona.
Dick, para com isso.
–
SLURP! O vira-lata do Bigode acabara
de lamber-lhe a boca.
–
Ele adora fazer
isso. Dick, deixa
a moça!....
– Não, moço. Tudo bem. – se ele
fizesse o carro pegar,
ela até
beijaria de bom-grado aquele cachorro morrinhento. O pensamento
desencadeou nela nova crise de riso.
A cada tranco,
Dick – que era,
na verdade, Richard, numa pronúncia
irreconhecível – pulava e continuava no seu colo. Vou evitar contato visual,
senão o cachorro
me lambe de novo.
– Pronto.
Agora é deixar
solto, e descer de ré.
– Daqui eu
levo, obrigado. – o marido era só gentilezas com o homem-bafo. Deu-lhe uns trocados
para a cervejinha,
como se ele
precisasse de mais uma.
– Valeu, sangue!
Até a próxima.
– agradeceu o faz-tudo, com Dick pulando ao fundo,
saudoso do perfume
dela.
– Próxima?!
Como assim,
próxima? – por
ela, nunca
mais passaria por
aquele caminho
amaldiçoado. Só vou de barca.
Isso se voltar
lá.
– Que
beleza, né? Voltou a funcionar.
– o doce de marido
agora puxava conversa.
Depois que
o tsunami urbano estourou, uma calmaria
cabralina apossou-se dele. Tentou até desanuviar o clima,
ensaiando uma brincadeira, que ficou sem resposta. Para ela, não havia mais brincadeira
possível. Agora
se tratava de aprender a guiar,
fosse um carro,
fosse a vida. Mesmo
que para isso precisasse desfazer o jogo.
7 comentários:
Muito, muito bom! Gargalhei por aqui! É exatamente assim que os homens são, em sua maioria. Tudo o que dá errado é culpa da mulher, da companheira. Imaginei a cara dela quando ele pediu: "desfaz o jogo". E a correlação com o final, então, ficou show! Agora, me permita destacar duas coisas: o cachorro fedorento lambendo a boca (hahahahah, eles fazem mesmo isso e de repente!) e o "calmaria cabralina". Divertido, leve,atual e bom demais!
Obrigada, querida! Nada como ter amigos...
Parabéns! Morri de rir. Dizem que pimenta nos olhos dos outros não arde, mas, apesar das risadas, se tudo isso aconteceu com você, imagino o desespero e me solidarizo. Isso de sermos culpadas por tudo é conhecido. Posso colocar no meu blog (www.bisous-angela.blogspot.com)? No Face dela tem o meu comentário.
Pode sim, Angela. Obrigada pela divulgação. Tirando a parte do cachorro, quase tudo é verdadeiro. Ainda não aprendi a dirigir, mas guio a minha vida...rs.
Excelente, Tatiana! Adorei o texto! Fiquei me lembrando de quantas vezes fui espectador de situações como essa. Pena que nem todas as mulheres tenham força para "desfazer o jogo" quando necessário! E pena também que muitos homens não consigam perceber que, às vezes, é importante mudar o estilo de jogo, a posição em que se joga ou (quem sabe?) o próprio time. - See more at: http://www.revistasamizdat.com/2013/09/desfaz-o-jogo.html#sthash.N9Noz4Qy.dpuf
Mas é só deixá-los em ponto morto por um tempinho, que tudo volta aos eixos...rsrs.
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