Receba Samizdat em seu e-mail

Delivered by FeedBurner

domingo, 22 de setembro de 2013

Até amanhã, uma herança

Dinheiro vivo, terras fecundas, imóveis em bom estado de conservação, testamento, joias, fotografias desbotadas feitas do jeito antigo à base de traquitanas analógicas e processo de revelação em quarto escuro. Aposto que a palavra herança te remete a essas figuras. Acontecia comigo, até que comecei uma fase estranhíssima de olhar para as coisas e para as pessoas de casa sem vê-las completamente. Tinha uma ponta de ausência enchendo o meu ver. Estavam todos ali, acordando, trabalhando, reclamando da falta de tempo, esperando o próximo aniversário para reunir a parentada num churrasco. Tudo criando raiz como a muda de manjericão que plantei na lata do achocolatado. Tudo por perto, mas me deixando a impressão de que me faltaria, de que terminaria a qualquer momento sem deixar fio, registro, vínculo.

Minha inicial em cursiva, cheia de voltas e um laço, num risco só. O guardanapo passado no prato antes de servir a comida no restaurante, a cor do meu cabelo, o desenho das unhas, a repulsa por queijo, a risada, uns desejos, umas melancolias. São hábitos e traços que fui pegando sem licença e passando para o meu nome. Constam no meu inventário imaginário. Não é preciso morrer para deixar legado. O herdar se faz até quando alguém toma para si uma maneira bem nossa de dizer, de fazer, de entender coisas, quando se ensina ou se aprende. Meu pai herdou o meu “até amanhã”. Não inventei a expressão, óbvio, mas costumo usar em todas as despedidas. Antes de dormir, depois do boa noite emendo um até amanhã. Digo até amanhã para as visitas, mesmo que nosso reencontro só seja possível no próximo verão. Assino meus e-mails com até amanhã. E na maioria das vezes tenho vontade, realmente, do contato no dia seguinte. Agora o pai entendeu aonde eu queria chegar com o meu até amanhã e o adotou.

Não sei explicar, mas nunca quero viajar. Evito. Nem a passeio, menos ainda a trabalho. E na segunda eu precisava participar de uma reunião na capital. Ô, saco. Final de domingo e eu com o carro cheio de mala, livros, sacos de biscoitos, muito contrariada começo a partir e o pai ali, esperando para fechar a garagem. Resmungo que não quero ir, que me dói a barriga, torcendo para que ele ainda possa me mandar ficar. Não pode. A vida adulta herda dos pais o poder sobre os filhos. Vai tranquila, filha. Dirige com calma, deixa o telefone ligado, e volta assim que puderes. Vamos te esperar com uma janta especial na quarta, lembra disso. Bufo, faço beiço e me conformo: tá certo, pai. Então, até amanhã, já que não tenho alternativa. Até, me responde, com aquele sorriso sossegado que só ele tem. Dou play na Norah Jones e sigo devagarinho, quase desistindo de andar as quatro ou cinco horas de estrada, os olhos molhados. Sou ridícula com esse tanto de apego, mas estou sozinha e me deixo chorar um pouco alto. Dane-se o rímel. Meu pai, parado enfrente ao portão, espera que meu carro suma no horizonte da avenida larga. O semáforo do primeiro cruzamento está verde para mim, é um sinal, penso. E penso pela última vez. A caminhonete no sentido perpendicular fura o vermelho, me atravessa e fim.

Share


Andréia Alves Pires
Nasceu em Rio Grande, cidade ao sul do Rio Grande do Sul, é jornalista, mestre em história da literatura e autora do livro de contos De solas e asas. Integra o Coletivo Fita Amarela, colabora semanalmente com contos ao jornal Diário Popular e publica o que escreve, em primeira mão, no blog www.desolaseasas.blogspot.com.
todo dia 22


3 comentários:

Que trágico! Os supersticiosos e medrosos que não gostam de viajar dirão: " 'Tá vendo? Não queria ir, forçou e ó... deu no que deu!". Eu noto que a temática da morte está bastante presente na sua obra. Interessante. Como sempre, muito bem escrito.

Finais trágicos dão bons resultados literários. Finais felizes cheiram mais a plástico.

Postar um comentário