Joaquim
Bispo
[A deambulação sofrida e desencantada
das personagens da obra “Cândido” de Voltaire por várias partes do mundo
termina no capítulo XXX em Constantinopla, onde o grupo se resigna a viver
da agricultura sob o lema: Devemos cultivar nosso jardim. Trabalhemos
sem filosofar – é a única maneira de tornar a vida suportável.
Neste pastiche-sequela introduzi um
matemático, como forma de homenagear o amigo escritor e matemático Alian, de
Curitiba, a quem o texto foi oferecido no natal de 2008.]
Embora tivessem acreditado, durante
algum tempo, que a vida e o trabalho na quinta os libertava de três calamidades
– o aborrecimento, o vício e a necessidade –, o certo é que Cândido, Pangloss,
Alian, Cunegundes e os outros não aguentaram muito tempo aquela vida demasiado
rural e preferiram arriscar sujeitar-se às sevícias da necessidade, a fim de
voltarem a saborear os estímulos do vício urbano e, sobretudo, livrarem-se da
assoberbante prevalência do aborrecimento. Venderam a quinta a um felá que
tinha um negócio de hortaliça porta-a-porta, dirigiram-se ao porto de
Constantinopla e compraram passagens no cargueiro Payflower que se dirigia à colónia portuguesa do Sacramento, no
estuário do Rio da Prata. Tencionavam, a partir desse destino, viajar para
norte e, quiçá, voltar a encontrar o Eldorado, de grata memória, ou mesmo
Curitiba, que as lendas diziam ser ainda mais fabulosa.
A viagem foi longa e Pangloss
entretinha-se a perorar sobre os efeitos e as causas no melhor dos mundos
possíveis. Dizia que Deus escrevia direito por linhas tortas, pois, se quisesse
que eles se transformassem em amáveis agricultores, não lhes tinha inculcado
enfado na alma e calos nas mãos. Cândido aprovava e apalpava o interior das
ditas. Alian dizia que Deus era uma criação humana e que portanto era efeito e
não causa. E que o livre arbítrio existia, não por maquinação sub-reptícia de
um deus mal assumido, mas pela ausência desse mesmo Deus, fosse bondoso, como o
mito cristão gosta de o pintar, ou cruel e vingativo como o do Velho
Testamento. Cunegundes, enjoada com os balanços do navio, passava a maior parte
do tempo dentro duma nebulosa etílica.
A bordo seguia também um matemático e
astrónomo turco que raras vezes se via, porque passava as noites no convés a
admirar as estrelas. Certa vez, envolveu-se numa troca de opiniões com Alian e
Pangloss.
– A grande demanda da minha vida – dizia
ele – é conseguir realizar a quadratura do círculo. Estou convencido que em
breve a alcançarei.
– Ah, caro amigo – retrucava Alian –
temo desiludi-lo, mas tal é impossível. É que Π (Pi) é um número transcendental
e como tal não pode ser construído um segmento de reta equivalente, usando
somente régua e compasso.
Esta resposta, avançada para o seu
tempo, levou a uma longa discussão que seria ocioso transcrever, mas que, duas
horas depois, evoluiu para:
– Também hei de provar que Fermat não
tinha razão – arrazoava o turco. – A grande demanda da minha vida é encontrar
um expoente diferente de 2 que sirva a equação apresentada por ele.
Pangloss, adiantava-se:
– A harmonia pré-estabelecida não pode
ser alterada, sem que o mal apareça. Tudo está bem como está.
E outros cumes de elegante argumentação.
Por fim, aportaram à colónia do
Sacramento, às primeiras horas de 26 de Dezembro, onde se viviam dias de grande
inquietação, pela iminência de mais uma invasão por tropas espanholas.
2 comentários:
mto bom, que prosa suave. deixou um quê de 'quero mais'. ABS
Obrigado, asdecopas!
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