Eu
que fui gerada depois da rádio, vi a televisão dar os primeiros passos, e uso
com relativa desenvoltura este colosso da moderna comunicação que é a internet.
Eu recebi a visita da minha avó Violante.
Podia
ter sido assim, mas não foi.
Eu
apenas imagino.
Se
não fosse minha avó Violante ter morrido nos seus frescos vinte e sete anos,
seria hoje uma madura senhora de cento e muitos anos, e eu ponho-me a imaginar como
seria se ela me visitasse um destes dias e pedisse, assim como se despercebendo
de como o mundo tinha mudado:
–
Pões-me água ao lume para um banho, minha filha?
Isto,
se ela viesse passar comigo uma tarde, uns poucos de dias.
Imagino
e falo-lhe, e imagino de novo como seria.
Para
que ela fosse entendendo, ou porque, tanto quanto ela, eu estaria temerosa do
que via através de seus olhos, dir-lhe-ia:
–
Somos os filhos dos seus filhos e os netos de seus netos. Somos, como a
Senhora, minha avó, descendentes daquele que ousou o sonho sentado nas galeras, preso
nas grilhetas ou escrevendo com penas de bichos em praias ignotas. O que
desvendou esse mistério que é o céu não ter presas em si estrelas como se fora
bordado, mas ser afinal um vazio imenso onde as estrelas estão dependuradas a
par de planetas e buracos negros e galáxias.
Um
imenso campo de forças é onde nos somos uns e outros, havia de afirmar-lhe a provocar-lhe o espanto.
A
minha avó Violante como seria outro que viesse com o conhecimento com que um
dia se tivesse ido de doença, do coice de um cavalo, de um disparo ou de um mau
parto; ou apenas pela degradação que é concomitante com o passar do tempo.
Como
a minha avó, cada um deles ficaria pasmado e temeroso de ver gentes falando sem
interlocutor, uns fones dependurados no ouvido, ou nem isso, que mesmo eu ainda
os cuido de loucos falando sozinhos por todo o lado. E eu dir-lhes-ia, como me
imagino a dizer a minha avó Violante:
–
Avó, eles falam ao telemóvel.
E
ela nem perguntaria: que é isso, filha?! que já minha avó se espantaria que eu
tomasse para mim o dinheiro em notas, outras que não aquelas com que tinha comprado
aquele tecido, o vestido verde que ela mesma costurou para levar ao baile. A
minha avó a olhar as notas a saírem em buracos na parede. Seria legítimo o seu
alvoroço e o seu espanto, e seria igual se fosse outro que tivesse vindo dos
primórdios da revolução do carvão e dos barcos movidos a vapor, que já era espanto
que chegasse esse fazer-se o ar quente em vez de braços de escravo ou alimária.
Tivesse
minha avó vindo do tempo de onde veio, ou tivesse ela vindo do fulgor das
campanhas de Bonaparte, e eu lhe diria de igual modo:
–
Não digais de loucos aos que vieram depois que vós vos fostes, que cada uma
dessas incomensuráveis, inimagináveis descobertas que fazeis e que tanto transtornam
vosso sentir de outros tempos, estava já inscrita em cada um dos vossos sonhos.
E
estou certa que ela me havia de sorrir e aquiescer que sim senhora.
Mas
ainda assim lhe seria estranho, e mereceria crítica severa, o ruído e o
movimento, e os carros, e as luzes que a deixariam tonta. E seria com mal-estar que veria frutas fora de época. E muito a desgostaria que
fosse Verão em meses de ser o pico do Inverno, que se dessem por desapreciadas
as estações do ano e desreguladas as colheitas.
Mas
creio que, logo que lhe fosse dado esconjurar o medo, ela acometeria na rádio,
na televisão e no telefone, seu humor de antanho como o faria na internet. E
para isso, a levaria eu, de manso, passo a passo, a ver de cada um o encanto,
mais que o susto que sempre se gera no homem face ao desconhecido.
Ela
estranharia tanta novidade. É evidente que ficaria em desassossego, mas,
sobretudo, lhe seria incongruente a pressa, a correria de vida, de cada ser humano.
E sei que a veria a implorar aos céus que acalmasse os seus descendentes acometidos
do pecado de querer controlar o tempo.
Sabedora
do silêncio e da serenidade, sei que minha
avó havia de pedir ao deus a quem tantas vezes implorou uma graça, que a salvasse
desta grande provação que era ver o homem alienado numa corrida insana contra o tempo.
Minha
avó Violante habituada à calma e ao raciocínio lento, como reagiria ela no
mundo do telemóvel e do GPS, ela cujos olhos se teriam habituado à
incomensurabilidade do Universo, deixaria que, curiosos, eles se passeassem pelas
telas de um monitor ou de um tablet, e
perguntaria, incrédula: que é isso? e aquilo para que serve?
A
minha avó Violante como se fora criança.
Sentar-nos-íamos
numa sombra e, juntas, havíamos de recordar que estrelas e planetas e sóis e estrelas se regem de igual modo que a bola que cada um de
nós, criança, atirou ao vidro da janela. E eu falar-lhe-ia de átomos e electrões, e
da física quântica, e sei que a faria chorar quando dissesse que o homem que
busca o como e onde do início dos mundos, também arrasa cidades com a cisão do
átomo.
E,
para sossega-la, iria passear com ela na margem de um rio, e falaríamos com gentes
da poesia e da arte. E havíamos de escutar canções que ela acharia em tudo
semelhantes às que um dia terá cantado. E, depois que tivéssemos percorrido a
cidade grande, depois de cada novidade lhe ser apresentada, ou nem todas, mas
as suficientes para que sentisse o temor e a grandeza, e a pequenez do homem a
querer ser deus. Depois que ela me dissesse, e eu me espantasse disso, que tudo
é relativo, tudo depende do ponto de vista. Depois que ela se apercebesse o que
foi o futuro, com o cuidado que lhe viria de ter vivido cada um dos minutos de
cozer o pão ou esperar um filho. Depois,
ela havia de dizer-me do cuidado para que do sonho não resulte pesadelo. E
eu havia de escutá-la.
A
minha avó habituada a que lhe preparassem um banho morno numa banheira com pés
em forma das patas de um bicho grande. Ou numa celha de madeira e
lata situada, uma ou outra, mesmo no meio de uma sala.
Ela
beberricando um chá de menta ficaria espantada que eu lhe tivesse o banho
pronto no justo momento em que mo pedia, ou quase. E os olhos que, sei, seriam
de um azul violeta quando os abria de espanto, ela os volveria para mim
perguntando:
–
Filha, a menina acha que vou meter-me aí dentro sujeitando-me a que reverbere
mais água da parede e eu me afogue e queime?!
A
minha avó Violante com o corpo ossudo coberto com uma capa de burel bordado com
um largo capuz, havia de obrigar-me:
–
Ora acabe com isso e vá buscar água ao poço e depois aqueça-a no lume. Faça
como lhe peço, minha filha.
E
eu havia de rir-me e ficaria agradecida que alguém me obrigasse a rolar o tempo
a um ritmo tão lasso.
Se a minha avó Violante me visitasse.
imagem : o banho de Alfred Stevens
4 comentários:
Então, hoje você está nostálgica, hein? Dos velhos tempos, da época em que a insanidade do progresso ainda não comprometia a cabeça e o sentimento. Eu confesso que gosto das modernidades (menos algumas, como as bombas atômicas, por exemplo). Prefiro o banho que é ligado instantaneamente, o celular que pode me tirar de enrascadas (quando tem bom sinal, claro). Mas também sinto falta de um pedaço de ontem. Não conheci as minhas avós, mas seriam Violantes, por certo. E é exatamente imaginar essa avó que faz delicioso esse texto. Ter saudade do que não se conheceu é permitido? Pois eu tenho. Talvez porque represente mais pureza, mais calor humano. É um texto aconchegante.
Já escrevi uma crónica-conto no mesmo sentido.
Além do espanto pelas modernidades, creio que o vosso maior desconforto seria ela, a antiga, ser uma jovem ao pé de ti, e haver que decidir, certamente com embaraço, quem trataria a outra com a deferência reverencial que se devia aos mais velhos.
ora Joaquim, sempre no ponto ou acrescentando :)
realmente, a minha avó Violante seria uma minha filha eheheheh
tá bem visto, sim senhora
E o TEMPO,esse TEMPO que atropela e se atropela para vencer no TEMPO,estaria desfazado "doutro TEMPO", que no TEMPO, viveu sem precisar de se acertar no TEMPO, qual modernices de Verão e Inverno no TEMPO, que a "Avó Violante", com a ironia que existia e própria do seu TEMPO,diria: Põe-te fina, menina,no meu TEMPO é que era,O que chamas o teu TEMPO,é outro TEMPO,é TEMPO DE PRESSA,de outra Era,e tão depressa abres os olhos, e já era... Adorei o Texto,e como sabe gosto da sua escrita. Parabens.
Réjo Marpa
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