Vivo de juntar contas que vou catando vida
afora. E as vou enfileirando feito fossem um colar. Desfio, hoje,
cinco dessas contas.
A primeira conta envolve um primo, José
Divino, acometido de paralisia logo ao nascer – perdeu os
movimentos da cintura para baixo. Para esse primo, que já se
encantou, ser bancário era o máximo das conquistas. Quando me
disse, em certo encontro, que seu sonho era ser bancário, isso que
para mim é uma realidade de trinta anos, fiquei tocado. E doeu-me a
certeza de que a realidade dele não abrigaria aquele sonho. Tive
sonhos – o de ser diplomata, por exemplo. Ao lado dos sonhos, a
certeza de que, se me empenhasse, eles seriam sonhos reais. Para o
meu primo, esse modesto sonho parecia um sonho impossível.
Outra conta é a de um marceneiro, Sr. Raul,
que foi fazer orçamento para uma nova estante e que acabei não
contratando. Quando viu a quantidade de livros na velha estante,
tomou-se de certo desconsolo e revelou o quanto tinha vontade de ter
estudado mais. E disse a frase que cortou meu coração: “A vida
não me deu essa oportunidade”.
Agora uma conta que colhi num hortifrúti perto
de casa. Essa conta me toca pela singeleza, pelo que há de
extraordinário na ordinariedade das nossas vidas. O que me chamou a
atenção foi o zelo com que o moço que lá trabalha cuida das
verduras: tudo limpo, tudo harmonioso, tudo simétrico... Põe no que
faz todo um sentido de cuidado, de capricho... Ali no hortifrúti
está toda a sua vida – assim me parece. Imagino que mora só, que
cuida da própria roupa, que dá um jeito na casa – tudo com o
mesmo zelo com que se dedica às verduras. Lindo!
Mais uma conta. Indo pra casa apressado, vejo
de relance uma moça conversando com uma senhora nas imediações de
um shopping.
Ao reparar bem, vejo que a senhora (uma moradora de rua, talvez)
chora de puro desconsolo. O que me enterneceu foi que, estando a
senhora sentada na sarjeta, a moça agachou-se, pôs-se no nível da
senhora e a ouvia com tanto acolhimento e atenção que meus olhos
ficaram rasos d’água na mesma hora.
Por fim, a conta que faz meus olhos
derramarem-se só de pensar nela. Está nos extras do documentário
sobre o poeta Manoel de Barros – Só
dez por cento é mentira. A cena
envolve uma espécie de agregado da família do Manoel cujo nome não
me lembro. No rosto dele está impressa a evidência de uma alma boa,
nobre... O fato é que ele está conversando com a equipe de
filmagens. A certa altura ele menciona alguém, mas diz apenas “Meu
padrinho”. Ao perceber que está falando com gente que não sabe de
quem ele está falando, ele pronto esclarece: “Meu padrinho, o Dr.
Manoel”. O que não dá pra descrever é o tamanho da gratidão que
ele põe nessa simples frase. A conversa prossegue e ele vai preparar
um café para a equipe. Sendo um homem simples, na casa não tem esse
luxo de bandeja e xícaras. Mas ele, pressentindo que a ocasião
exigia uma certa delicadeza, ele mesmo a delicadeza em pessoa, serve
o café em singelos copos americanos e o oferece às visitas num
prato comum que, pela ternura da intenção, vira suntuosa bandeja. A
cena fecha aí. E meu coração se abre para a grandeza dos gestos
delicados, onde quer que eles aconteçam.
2 comentários:
É, meu amigo, você é que é uma conta preciosa. Com essa sua índole boa, com essa delicadeza de energar os "por trás na vida dos que passam por seu cotidiano, com essa vontade de falar da grandeza do simples. Tocantes essas suas cinco contas de um colar!
Gratíssimo pelo comentário, Cinthia! Mais um que tenho de creditar na conta da sua generosidade. Obrigado!
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