Mariana passeava pelas ruelas estreitas do bairro velho, à
procura de puxadores antigos.
Adorava o bairro velho! Sentia nas paredes descoradas as
histórias de tantas almas que por ali tinham passado. As janelas com cortinas
de renda, as portas entreabertas que deixavam ver as íngremes escadas de
madeira por ali acima, as velhotas eternamente vestidas de preto, tudo aquilo a
encantava.
Atendeu a chamada do telemóvel quando este tocou – o amigo
saudou-a, disse uma graça, ela riu-se. Sentia-se bem, como se sentia sempre
quando perambulava pelas ruazinhas cheias de História e de histórias. Estava
quase a chegar à lojeca simpática e repleta de artigos, velhos uns, antigos
outros. Curiosa esta distinção, pensou: é bom ser “antigo”, é mau ser “velho”;
velho é imprestável, passado do prazo de validade, inútil, ao passo que
“antigo” é precioso, algo que cumpriu o destino dos anos e se mantém útil e
bonito.
Entrou e levou imediatamente uma pancada. Soltou um grito
abafado, entre assustada e surpreendida: não estava realmente magoada, tinham-lhe
batido com um saco de plástico cheio de qualquer coisa. A mulher que lhe batera
com tão inusitado objecto fugiu, assim como o acompanhante, um macho jovem e
ágil.
Mariana ficou interdita, sem perceber bem o que tinha acontecido
– estava encharcada. Cheirou a manga molhada, meio a medo: não cheirava a nada.
Passou as mãos pelo cabelo a pingar e cheirou-as: nada. Era água, água limpa.
Relanceou os olhos pela loja e viu o lojista no chão a ser
assistido por uma rapariga - “o que foi, o que aconteceu, estão feridos?” e era
a história simples de um assalto atabalhoado. O casal tinha entrado, ameaçaram
com a faca, queriam dinheiro e valores, o homem tinha respingado e levara uma
facada; entretanto ela tinha entrado na loja a falar alto ao telemóvel e eles
tinham fugido.
O homem estava ferido mas sem gravidade, a moça já estava a
chamar a polícia para pedir ajuda e Mariana pensou para si própria que ninguém
ia acreditar nela: tinha interrompido ladrões de naifa em punho em plena função
e que é que acontecia? Batiam-lhe com um saco de água limpa. Um saco de água?!?
…
Quando a mãe entrou em casa, o miúdo tristonho deitado na
cama não disse nada. Prostrado, os olhos mortiços eram olhos tristes de quem
não tem nem vitalidade nem esperança.
A mãe aproximou-se, sentiu-lhe a testa com a mão, beijou a
pequena bochecha e foi á cozinha improvisada no outro lado da divisão molhar o
pano em água da torneira para lhe esfriar a temperatura.
Depois foi esvaziar a panela, enchendo meio prato de uma sopa
rala e voltou para colocar o pano na testa febril e sentar-se na cadeira ao
lado do doente, de colher na mão; mas a criança recusava-se a comer, como já
tinha acontecido de manhã.
- Come, filho, senão não ficas bom. Come só um bocadinho, vá
lá…
E o miúdo nada, os olhos sofridos e a boca fechada para
aquele líquido ralo e de cheiro estranho.
- Tens de comer, filho… Se comeres a sopinha toda, amanhã
trago-te um peixinho de aquário, queres? Um peixinho azul. Tentei trazer um
hoje mas o saco rebentou e o peixinho fugiu… Amanhã volto lá e trago-te um,
vais ver, um peixinho azul com barbatanas compridas, pomos ali naquele frasco
grande. Vou trazer com muito cuidado para não rebentar o saco outra vez, está
bem? Mas tens de comer a sopa, vá lá…
4 comentários:
Interessante. Um final bem diferente. Eu já estava dando tratos à bola, aqui, pensando em que água era aquela! Gostei.
gostei
Uah adorei, msm :-)))))))))))))))))
Bem bom! Aparentemente, há uma espécie de anticlímax, mas só na ação, que na intensidade dramática há um crescimento, ao revelar-se "o reverso da medalha".
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