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quarta-feira, 10 de julho de 2013

A Maldição da Língua Portuguesa

Henry Alfred Bugalho

Qualquer escritor sabe, ou pelo menos deveria saber, que um título pode mudar toda a recepção de seu texto.
Um título como "A Maldição da Língua Portuguesa" é destes que atrairá todo os tipos de revoltados, professores de português e outros escritores, com sete pedras na mão, prontos para linchar o heresiarca.

Então, passado o furor inicial, é hora de botar panos quentes e tentar esclarecer o mal-entendido (?).

A Benção

A língua portuguesa é belíssima e, sonoramente, talvez seja uma das mais agradáveis. Há seis anos que moro fora do Brasil, e se há uma sensação que eu gostaria de ter pelo menos uma vez na vida, é a de ouvir o português com o ouvido que os gringos o escutam.
Os americanos são fascinados pela Bossa Nova e nos dizem que o português brasileiro é como se estivéssemos cantando, talvez porque a Bossa Nova é quase como se os cantores estivessem falando com este jeito malemolente do brasileiro.
Já os argentinos são deslumbrandos com o Brasil e muitos arriscam um português rudimentar com sotaque brutal. Dizem que é uma língua linda e são fãs da Xuxa e da Daniela Mercury. A rivalidade conosco é somente no futebol mesmo, de resto, eles adoram e consomem quase tudo que sai do Brasil e, quando podem, embarcam nas férias de verão para algumas das praias catarinenses.

O português realmente é uma língua linda e, assim como Fernando Pessoa, arrisco-me a dizer que "a minha pátria é a língua portuguesa". Não há como escapar disto: somos moldados por nossa família, pelo país no qual nascemos, pela escola, mas também pela língua que falamos, pois é através dela que apreendemos o mundo e por intermédio dela que nos expressamos.
Já tentei escrever alguns contos em inglês e traduzir outros, mas é antinatural. O português está em minhas veias e em minha mente, é a essência de quem sou como escritor, não há alternativa, é um caminho de via única.
Admiro aqueles escritores como Nabokov ou Beckett, que adquirem competência e maestria suficiente em outro idioma para serem capazes de escrever romances em inglês ou francês. Acredito que sejam necessárias décadas, pelo menos para mim, vivendo e convivendo com falantes de outro idioma, para um dia adquirir tal habilidade. O português está enraizado dentro de mim, fatal e inevitavelmente.

Todavia, literariamente o português é uma maldição.

A Maldição


Somos a ilha portuguesa na América Latina e Portugal é a ilha portuguesa na Europa. Somando todos os países falantes de português no mundo somos 236 milhões, a sexta língua mais falada no planeta e oficial em nove países, o que não seria nada desprezível se a maior parte destes países não fosse atrasada, pobre e com um número pequeno de leitores potenciais.
Além disto, não existe unidade entre estas nações, ao ponto de o português falado em outros países chegar a ser, em alguns casos, quase incompreensível entre si. As variações históricas e de colonização criaram vertentes deste idioma, com vocabulários próprios e até uma ortografia diferente, que uma medonha reforma ortográfica tentou unificar, sem sucesso até o momento.
Temos grandes autores canônicos, sem sombra de dúvida, como o próprio Fernando Pessoa já mencionado, que ouso afirmar ser o melhor escritor em português de todos os tempos e um dos maiores do mundo também. Há Camões, Machado de Assis, Guimarães Rosa, Clarice Lispector e o nosso único prêmio Nobel, Saramago.
Esta lista é imensa, eu lhe asseguro, mas somente para nós, falantes de português, porque fora de nossas fronteiras, fora de nossa pátria linguística, pouquíssimos deles são conhecidos, e muitos menos ainda os lidos. Os únicos autores realmente presentes no exterior, isto onde quer que você ponha os pés, são Paulo Coelho e Saramago.
O primeiro, ainda a maior vergonha para a intelectualidade brasileira, é um fenômeno inquestionável de vendas. Seus enredos simplórios, a escrita pouco rebuscada e os temas espiritualizados atraíram uma legião de fãs e cruzaram as fronteiras do Brasil, quase num projeto de dominação global. As pessoas leem Paulo Coelho e se sentem bem consigo próprias, esta é a natureza do que ele escreve e imagino que seja parte do que o tornou famoso. São poucos os que gostam de ler, ou ver um filme, para se sentirem mal, para ficarem desconfortáveis, para se angustiarem, ou serem tomadas pelo "desassossego". Num mundo como o nosso, tão violento e sem esperanças, talvez muita gente necessite deste alento, falso suponho, de encontrar respostas na Literatura: que nem tudo está perdido, que existe algum sentido e que podemos ser felizes.
Já Saramago, porque um prêmio Nobel nas costas pode catapultar a carreira e as vendas de qualquer escritor, mesmo que a escrita dele seja a extrema oposta da de Coelho, densa, inquietante, confusa e que exige grande esforço do leitor.

Excetuando estes dois nomes, e algumas publicações esporádicas por editoras ou por universidades estrangeiras, a língua portuguesa praticamente inexiste fora dos países lusófonos. E neste ponto estamos muito atrás dos países hispânicos da América Latina, e também de países com muito menos falantes do que nós, como a Alemanha, a Itália, ou o Japão, mas que proporcionalmente possuem um público leitor muito superior ao nosso. E também corremos atrás de paisotes, como a Irlanda, com vários grandes autores reconhecimentos mundialmente, quatro prêmios Nobel de Literatura, vindos de uma ilha com menos de 5 milhões de habitantes, mas que falam inglês, a língua hegemônica em nossos tempos.
Mesmo assim, uma língua literária não se faz através de seu número de falantes, mas através de seu número de leitores de fato.

E some-se a isto uma educação precária, desde as primeiras letras, uma escolha equivocada de autores extemporâneos no ensino da literatura em língua portuguesa, famílias sem hábito de leitura, escritores sem hábito de leitura (o que para mim é o mais surpreendente), e um mercado literário totalmente provinciano e colonizado, então é possível ter um vislumbre da maldição que a língua portuguesa é na vida de seus escritores.
Escrevemos mal, escrevemos para poucos, escrevemos sem perspectivas alguma de publicação, e se o sucesso um dia ocorrer, será localizado regionalmente e quase insignificante.

A nossa língua é belíssima, repito, mas ser um escritor de língua portuguesa é praticamente um suicídio literário. Pois uma obra sem leitores não existe.
Resta-nos pouco a fazer... Continuaremos escrevendo, uma letra após a outra, palavra após a outra, construindo frases, parágrafos, páginas, livros, sempre insuflados por esta esperança que algum destes poucos leitores desta nossa pátria da língua portuguesa deite seus olhos sobre nossos escritos, e nos alegraremos genuinamente quando isto ocorrer.

Publicado em Blog do Escritor

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6 comentários:

Olá, Bugallho :-) Acho que já havia lido este artigo - talvez em sua escrivaninha no Recanto das Letras ou em alguma edição mais antiga da revista, não recordo agora, talvez seja só impressão. Cito:"Escrevemos mal, escrevemos para poucos, escrevemos sem perspectivas alguma de publicação, e se o sucesso um dia ocorrer, será localizado regionalmente e quase insignificante." Comento: i) do pouco conhecimento lingüístico que tenho, penso que toda e qualquer língua tem valor incalculável, o que por si só já vale o esforço de, nela, escrever; ii) generalizar leva, maioria das vezes, a uma falsa visão da realidade e iii) bons escritores sabem muito bem por que escrevem e geralmente prêmios e sucesso rápido ou a qualquer tempo não está na lista de objetivos 'pés-no-chão'; iv) o que atrai certos leitores, independente da língua em que certos textos foram escritos originalmente, são as idéias ou ideologias por trás (e os russos estão aí para reforçar esta hipótese). Não tome como uma crítica o que agora vou dizer, é apenas uma observação, sim? Os seus escritos, por exemplo, estão cheios do pensamento 'norte-americano' nas entrelinhas (a meu ver, e posso estar enganada, pois não li todos os seus escritos, apenas alguns, avulsos). Isso por certo atrai leitores que admiram esse povo e afastam outros que, conscientemente, buscam alternativas a this way of life. Valeu a reflexão. Saudações letripulistas, até!

Antes de tudo, obrigado pela leitura, Helena.

Certamente que ter morado nos EUA ajudou-me a ver em primeira mão, compreender e admirar o mercado cultural dos EUA, sem dúvida o mais poderoso e influente do planeta.
Não teria razões para comparar o mercado literário brasileiro com o da Zâmbia, por exemplo, primeiro porque nem tenho conhecimento do que se passa lá, tampouco elês tem relevância alguma no cenário literário global (nem o Brasil, aliás).

Via de regra, nós brasileiros somos mais consumidores culturais do que produtores, o que é ótimo para quem exporta para nós seus produtos culturais, mas péssimos para os produtores locais.

Deixe-me responder pontualmente cada uma de suas observações:

"i) do pouco conhecimento lingüístico que tenho, penso que toda e qualquer língua tem valor incalculável, o que por si só já vale o esforço de, nela, escrever"

Exatamente, e é por isto que tantos autores, incluindo a mim, continuamos escrevendo, afinal de contas é um ramo que dá pouco ou nenhum retorno (financeiro e de reputação), ou seja, insistimos porque pensamos valer a pena.

"ii) generalizar leva, maioria das vezes, a uma falsa visão da realidade"

Geralmente, a generalização parte da observação da realidade. O comportamento da maioria não extingue as exceções, isto me parece ser óbvio.

"iii) bons escritores sabem muito bem por que escrevem e geralmente prêmios e sucesso rápido ou a qualquer tempo não está na lista de objetivos 'pés-no-chão'"

Antes de tudo, incomoda-me o termo "bons escritores", simplesmente porque o que é bom ou ruim se trata mais de uma convenção temporal e geográfica do que um conceito absoluto de valor.
Inclusive, esta própria observação é uma generalização como a que você condenou no ponto dois.

Devem existir vários "bons autores" (o que quer que isto signifique) que sonham com prêmios literários e com vendagens astronômicas, senão, ninguém concorreria a prêmios como o Portugal Telecom, Jabuti, Booker, Pulitzer e assim por diante, pois "bons escritores" não se importariam com isto.
Alguns realmente não se importam...

"iv) o que atrai certos leitores, independente da língua em que certos textos foram escritos originalmente, são as idéias ou ideologias por trás (e os russos estão aí para reforçar esta hipótese)."

Permita-me dizer que isto é ingenuidade. O que atrai os leitores é a ideologia dominante, o marketing, a visibilidade nas prateleiras (o que custa muito caro para as editoras), as indicações dos amigos, dos professores, da Universidade, da televisão, jornais e revistas.
Na maior parte dos casos, a seleção de uma obra para leitura não é um ato espontâneo e descompromissado, é um reflexo social.
Lemos Literatura estrangeira porque é o que o mercado de consumo nos soca goela abaixo. Não vamos ler um autor da Zâmbia, voltando ao primeiro exemplo, simplesmente porque o livros daqueles autores jamais chegarão às prateleiras de nossas livrarias.
Publicar e vender livros também é um ato político de dominação cultural.
E, como você mencionou os russos, se lemos as obras de Dostoievsky ou Tolstoi ainda hoje, é porque no século XIX havia uma porção de émigrés russos na França que traziam tais obras para o conhecimento dos leitores ocidentais, mesmo assim, há vários grandes autores russos contemporâneos desconhecidos porque nenhuma editora brasileira os traduz. O processo de composição do cânone é complexo e há vários motores silenciosos que permitem a consagração de certos autores, e o esquecimento de vários outros.

Por fim, a minha preocupação como autor é, antes de escrever assuntos brasileiros para brasileiros, participar do rico diálogo mundial.
Hoje, com a internet, qualquer um pode ser lido por qualquer pessoa em qualquer parte do mundo. E a preocupação de como nossa escrita chegará a tais leitores, em qual linguagem, em qual formato, é mais genuína do que jamais foi.
Talvez Machado de Assis ou José de Alencar não pudessem aspirar ser lidos por um chinês ou tailandês, mas acho que a minha geração e as gerações futuras estão falando para um público muito mais vasto e diversificado.
Inclusive, pelos temas que abordo, nem me sentiria um autor brasileiro, pois raramente você verá índios, sertão, jagunços, favelas, onças, selvas, mulatas, praias paradisíacas ou qualquer outro aspecto que o naturalismo e o regionalismo de 30 consagraram como a visão sobre boa parte da Literatura brasileira. Talvez fosse mais fácil atrair a atenção com tais temas exóticos, mas não é o que me interessa, tampouco me sentiria confortável discorrendo sobre tais estereótipos.

Abraços.

Olá, Alfred, obrigada pela resposta. Sei que a sinceridade não é apreciada por muitos nesse meio 'literário'. Não é o meu caso, gostei da sua resposta, e do tom. É uma pena, pois desperdiçamos boas chances de real compartilhamento simplesmente tentando provar, por A mais B, quem tem ou não razão. Não é o meu propósito. Eu só quis chamar sua atenção para outros aspectos da questão e minhas observações não foram pessoais nem agressivas, não o conheço e por isso não posso, não devo nem quero julgá-lo. Continuo discordando do seu ponto de vista, mas não tenho tempo agora, nem vontade, para entrar de cabeça numa tal discussão, não vale a pena. Grata pela atenção, Helena.

"Eu só quis chamar sua atenção para outros aspectos da questão e minhas observações não foram pessoais nem agressivas..."

Não tenho dúvida disto, Helena, tampouco as minhas. ;)

Abraços.

Uma visão mais panorâmica sempre se torna possível,quando temos os pontos de observação sobrelevados.O ponto comum entre esses avistamentos ,coloca os dois pontos de interesse geral numa sociedade;onde o poder maior é o da comunicação;que são :a escrita,e a leitura(sejam quais formas simbólicas e de sentido artístico,sejam suas representantes),e respectivamente o que as envolve em sentido mais direto e original,que é sua identidade nacional...sua etnia.É quase evidente que outros povos fizeram desse princípio de identidade ,um reforço de caráter linguístico,e isto foi refletir no fundamento básico de qualquer cultura latente de bons escritores,ou seja,o ensino das características do Universo simbólico das letras.O Brasil é deficiente nesses dois aspectos fundamentais para a construção de uma literatura robusta e sadia,é a falta de identidade étnica(idealismo),e a pouco universalismo da educação,e isto,muito anterior ao primário,ou pré-escola,portanto,apenas acrescento aos ilustres debatedores,uma pouca visão de sobrevôo.

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