“Isto não é real” pensou
subitamente enquanto limpava as lágrimas com o lenço já encharcado, “não é
real, vem o vento e seca tudo, é como se nunca tivessem existido”.
“Não é real, são hormonas, é química,
um desequilíbrio qualquer entre ácidos e bases, afinal somos todos uns
conjuntos de química com bonitas caixinhas coloridas, pelo menos alguns de nós
são bonitas caixinhas, mas o que interessa é que somos todos assim, equilíbrios
vacilantes entre sais e vitaminas e… e… coisas, não é real, não é real, recompõe-te”.
As lágrimas caiam sem hesitação, inocentes
de pensamentos, escorriam pelo rosto de dentes cerrados até o seu caminho ser
interrompido pelo lenço húmido.
“A vida é assim, não há volta para trás, é assim
e vai ser assim até ao fim, não adianta nada essa parvoíce, recompõe-te, recompõe-te,
se te vêem assim ficam tristes e, se nada podem fazer, porque é que hás-de entristecer
quem gosta de ti? Isto não é real, vem o vento e seca tudo, é como se nunca tivesse
existido. Recompõe-te, anda, isto não é real e magoa a quem não queres
entristecer, recompõe-te, põe o lenço a jeito do vento, com o sol está quase
seco, vês? Não é real, não é real, é como se nunca tivesse existido”.
Encolhida no banco do jardim público
onde nunca passava ninguém, dobrava e desdobrava o lenço de papel, segurava-o
entre dois dedos ao sol e à brisa, à espera do milagre de secagem que daria
razão à voz interior.
"Há meses que é assim e agora é que te deu para isto? Que te dói, o gato que passou, o cão que te cheirou, as folhas a abanar na árvore? Nada têm a ver com nada e as coisas são como são. Esse peso não é real, são enzimas, hormonas, o sol põe-se todos os dias e tu não choras por isso"
“Não adianta, choras, choras e depois?
Fica tudo na mesma, é a vida e podia ser pior, tudo pode ser pior do que é agora, já
sabes isso. Recompõe-te, recompõe-te, isto não é real, são os sais, as hormonas,
sei lá, é uma coisa qualquer, não é real, não é real, vem o vento e seca tudo, não é
real, recompõe-te, tens de ir para casa”.
Quando chegou a casa, sorria. A filha não deu por nada.
Quando chegou a casa, sorria. A filha não deu por nada.
5 comentários:
Obrigado por este texto! Pressenti a dor no outro, aquela dor anónima que só a ele incomoda, mas não é menos real.
Por erro meu, o texto não foi completo, faltava-lhe a ultima frase...
Obrigada, Joaquim, como sempre sente o que, não estando expresso, está presente.
Eu senti uma angústia, uma identificação imediata. E, no entanto, você fala de dor e pranto sem contar o motivo. Não precisa. Não sei o motivo da personagem, mas já estive lá nesse lugar de choro e lenços e tristeza. Em que a gente não sabe o que foi a gota d'água. É assim. Desse jeito. Uma coisa que cresce e precisa sair em rio que pinga. E a gente se cobra dizendo que é exagero, que são os hormônios, que é coisa de mulherzinha... Mas não é. Precisa vir, vir, vir até que vai. Quanto de nós não sabem os filhos. Porque, ao chegar a casa, já estamos sorrindo. Recompostos. Seu texto sou eu, já fui eu, já foi tantas de nós, mulheres. Parou aqui, na minha garganta, de tão belo. E me deixou com os olhos marejados. Mas já, já o vento seca, não é?
gostei muito
Muito bom, MAC! Quero ver mais coisas tuas :)
Postar um comentário