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segunda-feira, 20 de maio de 2013

O vento que bate no dente aberto


Sentaram-se na sala de espera do dentista. Eram os únicos.
- Walter?
- Moacir?
- Está me reconhecendo?
- Áiiiinnnffff! Infelizmente: Moacir Dantas Tomé.
- O mesmo digo eu: Walter Bentes Avelino, aiiiinnnffff!,
- Que coincidência dos infernos. Depois de tantos anos,
ficar lado a lado com você.
- O pior: na antessala do dentista. Muito azar.
Minha dor de dente é maior que a vontade de ir embora.
- Áááiiiinfff! Só de falar bate vento. Molar superior esquerdo.
Ou escapo de ver a sua cara. Ou escapo de um tratamento de canal.
- Seja homem uma vez na vida, Walter. Encare a minha presença,
o barulho do motorzinho e o vucovuco do ferrinho no dente.
- Ááááiiinnfff! Não me ofenda, Moacir. O tempo passou.
Agora o que temos em comum é dor de dente.
- Peraí, não começa, Walter. Nunca tivemos nada em comum.
- Não foi o que você pensou há tantos anos, Moacir.
- Você é um ressentido. E injusto. E sempre mal informado.
- Mal informado, é? Quer dizer que, depois de tanto tempo,
você nega que assediava minha secretária? Sabendo que eu era seu chefe
e que ela era minha amante?Áiiiinnnffff!
- Não nego. Mas também não tivemos caso algum. Já se passaram 22 anos,
Walter. De lá pra cá, eu e você juramos nunca mais nos encontrar.
Por que isso atormenta tanto sua alma diminuta?
- Porque a Belinha é minha mulher! Mãe dos meus filhos!
- Áiiiinnnffff!Você se casou com ela?
- Casei, e daí?
- Patife! Casou com a amante do trabalho, largou a mulher!
- Patife é você, que foi visto entrando num motel… depois do
expediente… áiiinnff!
- Prova.
- Detetive. Tive acesso a fotos. Você, num Fusca, com uma morena
de cabelo Chanel parecida com a Belinha. Parando na portaria, pegando a chave,
entrando na suíte 34. Você saltando, olhando para um lado e para o outro,
fechando a porta de esteira com cara de songamonga.
- Mau detetive, se quer saber. Considere a hipótese de não ter sido a Belinha.
E, se eu tivesse saído com uma garota de programa que era a cara da Belinha?
- Mais uma ofensa: Belinha nunca teve cara de piranha. Áiiiinnnffff!
- Considere que a piranha tinha cara de Belinha. Considere que poderia
ter sido um fetiche meu. Transar com uma sósia da amante do chefe,
do todo-poderoso Walter Bentes Avelino, arrá! E... aiiiinnnffff!
- Foi por isso que botei você no olho da rua. De um jeito ou de outro,
você foi punido pela intenção.
- Talvez sim, talvez não.
- Como talvez não?
- E se tivesse sido a Belinha mesmo?
- Belinha nunca teria dado bola para um subalterno.
- E me demitiu por quê? Me humilhou por quê?
Espalhou que eu vivia espiando meninos no banheiro, disse que eu era a
desonra da firma. Por quê?
- Já disse. Você foi castigado pela sua intenção atrevida. Áiiiinnnffff!
- E se eu e Belinha tivéssemos vivido um tórrido romance clandestino?
Será que não foi isso? Pense bem: eu e sua amante numa fornicação selvagem,
arrasadora e enlouquecida, de explodir em gemidos, juras roucas de amor,
súplicas ao tempo que se estanque, êxtases e mais êxtases até cansar, até enjoar.
Não enjoar dela, claro, mas de ver sua cara coitada de homem casado, adúltero,
macho otário, traído pela própria amante.
- Para de me atormentar! Áááiinnnfff! O detetive não me garantiu que era ela.
Era pa-re-ci-da com ela! Você é que é um delirante covarde e incompetente
com as mulheres.
- Talvez sim, talvez não.
- Como assim?
- Bom, meu caro Walter, se quiser saber mesmo, chegue em casa hoje
e diga à Belinha que me encontrou no dentista. Se ela disser:
“O Moacir? Há quanto tempo?”, pense o que quiser. Se ele disser que não se lembra
de nenhum Moacir, piorou. Mas se ela silenciar, desconversar, fizer cara de bidê,
tire suas conclusões. A gente nunca sabe quando uma mulher está ou não está fingindo.
Diferente dos homens que gaguejam, a mulher faz cara de que nem está aí para a suspeita.
Lamento, mas sua dúvida continua.
- Você é um desgraçado!Áiiiinnnffff!
- Desgraçado e vingativo. Precisava o destino resolver nos colocar nesta sala de espera
para eu dizer essas verdades. Ou melhor, colocar mais dúvidas na sua testa.
- Você é bem filho daquela madame que espalhou doença para o batalhão inteiro
dos fuzileiros navais!
- Que é isso, Walter? Olha o que um ciúme requentado é capaz de fazer! Perdeu a compostura?
Deixa minha santa mãe no céu! Com licença, a atendente já está me chamando, cheguei primeiro.
- Vai, traste! Quero ouvir seus urros de dor! Verme! Purulento! Áááiinnnfff!!
- Com certeza não vou sentir nada. Já ganhei o dia, meu caro Walter. Sabendo que o próximo é você,
vou acabar com o estoque da anestesia.


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José Guilherme Vereza
Carioca, botafoguense, pai de 4 filhos. Redator, publicitário, professor, roteirista, escritor, diretor de criação. Mais de mil comercias para TV e cinema. Uma peça de teatro: “Uma carta de adeus”. Um conto premiado: “Relações Postais”. Um livro publicado “30 segundos – Contos Expressos”. Mais de 3 anos na Samizdat. Sempre à espreita da vida, consigo modesta e pretensiosamente transformar em ficção tudo que vejo. Ou acho que vejo. Ou que gostaria de ver. Ou que imagino que vejo. Ou que nem vejo. Passou pelos meus radares, conto, distorço, maldigo, faço e aconteço. Palavras são para isso. Para se fingir viver de tudo e de verdade.
todo dia 20


1 comentários:

Você, sempre bem-humorado! Divertida e tresloucada história. Cara de bidê foi tudo de bom! Aliás, o texto todo é muito bom. Áiinnfff!

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