Sentaram-se na sala de espera do dentista. Eram os únicos.
- Walter?
- Moacir?
- Está me reconhecendo?
- Áiiiinnnffff! Infelizmente: Moacir Dantas Tomé.
- O mesmo digo eu: Walter Bentes Avelino, aiiiinnnffff!,
- Que coincidência dos infernos. Depois de tantos anos,
ficar lado a lado com você.
- O pior: na antessala do dentista. Muito azar.
Minha dor de dente é maior que a vontade de ir embora.
- Áááiiiinfff! Só de falar bate vento. Molar superior esquerdo.
Ou escapo de ver a sua cara. Ou escapo de um tratamento de canal.
- Seja homem uma vez na vida, Walter. Encare a minha presença,
o barulho do motorzinho e o vucovuco do ferrinho no dente.
- Ááááiiinnfff! Não me ofenda, Moacir. O tempo passou.
Agora o que temos em comum é dor de dente.
- Peraí, não começa, Walter. Nunca tivemos nada em comum.
- Não foi o que você pensou há tantos anos, Moacir.
- Você é um ressentido. E injusto. E sempre mal informado.
- Mal informado, é? Quer dizer que, depois de tanto tempo,
você nega que assediava minha secretária? Sabendo que eu era seu chefe
e que ela era minha amante?Áiiiinnnffff!
- Não nego. Mas também não tivemos caso algum. Já se passaram 22 anos,
Walter. De lá pra cá, eu e você juramos nunca mais nos encontrar.
Por que isso atormenta tanto sua alma diminuta?
- Porque a Belinha é minha mulher! Mãe dos meus filhos!
- Áiiiinnnffff!Você se casou com ela?
- Casei, e daí?
- Patife! Casou com a amante do trabalho, largou a mulher!
- Patife é você, que foi visto entrando num motel… depois do
expediente… áiiinnff!
- Prova.
- Detetive. Tive acesso a fotos. Você, num Fusca, com uma morena
de cabelo Chanel parecida com a Belinha. Parando na portaria, pegando a chave,
entrando na suíte 34. Você saltando, olhando para um lado e para o outro,
fechando a porta de esteira com cara de songamonga.
- Mau detetive, se quer saber. Considere a hipótese de não ter sido a Belinha.
E, se eu tivesse saído com uma garota de programa que era a cara da Belinha?
- Mais uma ofensa: Belinha nunca teve cara de piranha. Áiiiinnnffff!
- Considere que a piranha tinha cara de Belinha. Considere que poderia
ter sido um fetiche meu. Transar com uma sósia da amante do chefe,
do todo-poderoso Walter Bentes Avelino, arrá! E... aiiiinnnffff!
- Foi por isso que botei você no olho da rua. De um jeito ou de outro,
você foi punido pela intenção.
- Talvez sim, talvez não.
- Como talvez não?
- E se tivesse sido a Belinha mesmo?
- Belinha nunca teria dado bola para um subalterno.
- E me demitiu por quê? Me humilhou por quê?
Espalhou que eu vivia espiando meninos no banheiro, disse que eu era a
desonra da firma. Por quê?
- Já disse. Você foi castigado pela sua intenção atrevida. Áiiiinnnffff!
- E se eu e Belinha tivéssemos vivido um tórrido romance clandestino?
Será que não foi isso? Pense bem: eu e sua amante numa fornicação selvagem,
arrasadora e enlouquecida, de explodir em gemidos, juras roucas de amor,
súplicas ao tempo que se estanque, êxtases e mais êxtases até cansar, até enjoar.
Não enjoar dela, claro, mas de ver sua cara coitada de homem casado, adúltero,
macho otário, traído pela própria amante.
- Para de me atormentar! Áááiinnnfff! O detetive não me garantiu que era ela.
Era pa-re-ci-da com ela! Você é que é um delirante covarde e incompetente
com as mulheres.
- Talvez sim, talvez não.
- Como assim?
- Bom, meu caro Walter, se quiser saber mesmo, chegue em casa hoje
e diga à Belinha que me encontrou no dentista. Se ela disser:
“O Moacir? Há quanto tempo?”, pense o que quiser. Se ele disser que não se lembra
de nenhum Moacir, piorou. Mas se ela silenciar, desconversar, fizer cara de bidê,
tire suas conclusões. A gente nunca sabe quando uma mulher está ou não está fingindo.
Diferente dos homens que gaguejam, a mulher faz cara de que nem está aí para a suspeita.
Lamento, mas sua dúvida continua.
- Você é um desgraçado!Áiiiinnnffff!
- Desgraçado e vingativo. Precisava o destino resolver nos colocar nesta sala de espera
para eu dizer essas verdades. Ou melhor, colocar mais dúvidas na sua testa.
- Você é bem filho daquela madame que espalhou doença para o batalhão inteiro
dos fuzileiros navais!
- Que é isso, Walter? Olha o que um ciúme requentado é capaz de fazer! Perdeu a compostura?
Deixa minha santa mãe no céu! Com licença, a atendente já está me chamando, cheguei primeiro.
- Vai, traste! Quero ouvir seus urros de dor! Verme! Purulento! Áááiinnnfff!!
- Com certeza não vou sentir nada. Já ganhei o dia, meu caro Walter. Sabendo que o próximo é você,
vou acabar com o estoque da anestesia.
segunda-feira, 20 de maio de 2013
O vento que bate no dente aberto
por José Guilherme Vereza
1 comentário
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Você, sempre bem-humorado! Divertida e tresloucada história. Cara de bidê foi tudo de bom! Aliás, o texto todo é muito bom. Áiinnfff!
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