NOITES DE CHUVA
“Tudo que não seja visceral me
entedia profundamente.” Ele costuma dizer, entre
irônico e melancólico. O cinza dos olhos escanchado na paisagem. “Gostaria de
comer as vísceras do dia, mas o tempo, esse corpo insuportável, já apodreceu irreversivelmente
em mim.”
Ninguém o leva a sério. As idas à mercearia do povoado e os contatos com
os pescadores, cada vez mais esporádicos. No bornal de pano, índigo desbotado, sempre
sujo, o exemplar envelhecido d’O anticristo,
do Nietzsche. Quase não mais o lê, como fazia todas as tardes, no banco da
praça, antes do avanço da catarata. Jamais diz onde mora. E se tentam segui-lo,
sempre o perdem de vista quando se embrenha na mata, mais rápido do que sua
idade permitiria supor.
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Pouco sobre cada um. “Tudo que
importa é viver o momento com a intensidade de uma tempestade, pois a vida é
rio, a morte é mar.” Ela o levou a sério.
Tempo à margem do calendário.
Conjugaram juntos os mais variados verbos. Experimentaram
texturas e formas, cheiros e sabores. Todos os sentidos num só: vertigem. Laços
firmados sobre a umidade dos lençóis.
Dois seres: o munduniverso.
Um dia, o inesperado. Não sei o que
aconteceu. Não consigo mais... Vou embora. O silêncio não cumpre a função
de pedir. Quem fica não se sente no direito: prisioneiro a cumprir sentença
desconhecida. Quem vai, desbravador de horizontes, mundo afora, perdistante.
Não se sabe nem notícia.
E agora o telefonema. Estou no aeroporto, acabei de chegar. Vou
pegar um táxi e ir até aí. Tenho muito a lhe dizer... Mais de cinco anos, e
ela fala como se tivessem se visto ontem.
Reprisa imagens desgastadas. Não
demora e ela aparecerá à porta, meio encabulada, como na primeira vez.
Coincidência: hoje também chove. Tomara que se molhe de novo, ele fantasia.
“Olá, franguinha molhada”, talvez diga. E ela talvez abaixe os olhos e sorria
desconcertada. Ou talvez se atire em seus braços e o beije com desespero, quase
dor. Talvez transem ali mesmo, no tapete agora molhado. Basta que conversemos
assim, ele pensa, na língua insofismável dos corpos.
O preparar-se é metódico. No gelo, o
tinto chileno reservado para ocasiões especiais. As taças de cristal puro,
herança de família. O provolone em cubinhos quase simétricos. Não lhe
perguntará nada, já decidiu. As velas, como na primeira noite, quando faltou
luz. O banho ao ritmo do assovio enferrujado. Ouvirá o que ela tem a dizer,
entrecortando-lhe as frases com a língua sedenta, atrevida. Uma roupa
confortável, fácil de tirar. “Perdoar?! Não há o que perdoar. Devemos ser fiéis
a nós mesmos...” O perfume amadeirado de que ela gostava (ainda se lembrará?).
E o arremate: “desta vez não vou deixar você ir”.
Toca de novo o telefone. Alguém diz
que encontrou o número na bolsa de uma das vítimas do acidente, se ele a
conhecia.
O aparelho, agora mudo, torna-se pêndulo de relógio sem horas.
Edelson Nagues
Do livro Humanos (Scortecci Editora)
2 comentários:
"O silêncio não cumpre a função de pedir"... Não faço mais comentários sobre sua obra, pois gosto dela toda. Mas é preciso destacar essas frases perfeitas. Como: "Gostaria de comer as vísceras do dia...".
Mto obrigad, Cinthia. Sua leitura generosa sempre enriquece meus textos. Abraço.
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