Para ser
cronista é preciso pertencer à raça dos “cães vadios, livres
farejadores do cotidiano”; é preciso levar jeito para
nadifundiário, para “apanhador de desperdícios”.
Com
“(...) apenas duas mãos e o sentimento do mundo”, lá vai o
cronista, escrevente crônico, “descobrir encanto e encantamento na
busca desses brilhos do chão”.
Todo cronista é um homenino que insiste em manter residência
fixa na infância e não abre mão de brincar com as patas do bicho
alfabeto.
“Porta-voz
do prosaico”, o cronista vive de freqüentar os subúrbios soberbos
da vida menor e não deixa morrer em si “o desejo de estar
disponível para ser encantado”.
Nada alegra mais o cronista do que colecionar “pedrinhas apanhadas no rio do cotidiano”, do que “cobrir de formiguinhas o açúcar do papel”.
Cronista
é quem não resiste àquele “gostinho raro, escondido, de mexer
com as palavras até que elas dêem uma resposta de si” e dos
outros; é quem não se cansa de observar “a vida se vivendo nele e
ao redor dele”.
Ser
cronista é estar disposto a se entregar ao “imprudente ofício de
viver em voz alta”, é deter o poder humílimo de capturar o
(extra)ordinário que pousa “no chão breve do cotidiano”.
Porque
seu ofício é “catar o mínimo e o escondido”, é “recolher da
vida diária algo de seu disperso conteúdo humano”, o cronista
embarca todo dia numa “viagem prazerosa e vadia pelo rés-do-chão,
sem preparativos e sem agendas”.
Cronistas são “pequenos Noés que, diante do dilúvio do
esquecimento, lutam para salvar em suas frágeis arcas de papel”
resíduos da vida que corre sem parar.
Para as
galas do papel, o cronista persegue arranjos verbais capazes de
provocar “insuportável delícia auditiva”, façanha reservada a
todos os grandes desse gênero tido como menor, estando o enorme
Rubem Braga na comissão de frente.
Ah, quem
dera que eu também pertencesse a essa raça de “cães vadios,
livres farejadores do cotidiano”! Não sei se eu, pequenino cão,
estou apto a latir algo cronicamente viável e à altura dos latidos
de uma linhagem nobilíssima que abriga verdadeiros cães de raça.
Não será demasiada pretensão de um vira-letras sem pedigree
querer juntar-se a essa linhagem?
O que sei é que devo pedir a bênção de todos os que citei nesta crônica e mais: Manuel Bandeira, Cecília Meireles, Paulo Mendes Campos, Rachel de Queiroz, Alcione Araújo, Ivan Ângelo, Conceição Freitas, João Ubaldo Ribeiro, Humberto Werneck, Xico Sá, Joaquim Ferreira dos Santos, Luís Fernando Veríssimo, Antônio Prata, Ana Miranda, Marina Colasanti, entre tantíssimos outros.
Com
a bênção de todos esses mestres em guardar fragmentos de vida no
estojo das palavras, digo: eu também quero ser cronista. Eu
preciso abrigar meus latidos nas margens do papel. É questão de
sina, talvez. Repare o raro leitor que trago o verbo “latir” no
nome.
(PSiu
– Segue a autoria do que está entre aspas, na ordem em que aparece
no texto: Marlyse Meyer, Manoel de Barros, Drummond, Mia Couto,
Affonso Romano de Sant'Anna, Mia Couto, Eustáquio Gomes, Fabrício
Carpinejar, Manoel de Barros, Clarice Lispector, Rubem Braga,
Alexandra Rodrigues, Machado de Assis, Fernando Sabino, José
Castello, Alberto Manguel, Nelson Rodrigues e Marlyse Meyer. Vale
esclarecer que as citações de Manoel de Barros [segunda citação]
e Clarice Lispector tiveram de ser ajustadas por causa da estrutura
de terceira pessoa em que foram inseridas).
0 comentários:
Postar um comentário