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terça-feira, 28 de maio de 2013

Cronista, um vira-letras de raça


Para ser cronista é preciso pertencer à raça dos “cães vadios, livres farejadores do cotidiano”; é preciso levar jeito para nadifundiário, para “apanhador de desperdícios”.

Com “(...) apenas duas mãos e o sentimento do mundo”, lá vai o cronista, escrevente crônico, “descobrir encanto e encantamento na busca desses brilhos do chão”.

Todo cronista é um homenino que insiste em manter residência fixa na infância e não abre mão de brincar com as patas do bicho alfabeto.

“Porta-voz do prosaico”, o cronista vive de freqüentar os subúrbios soberbos da vida menor e não deixa morrer em si “o desejo de estar disponível para ser encantado”.

Nada alegra mais o cronista do que colecionar “pedrinhas apanhadas no rio do cotidiano”, do que “cobrir de formiguinhas o açúcar do papel”.

Cronista é quem não resiste àquele “gostinho raro, escondido, de mexer com as palavras até que elas dêem uma resposta de si” e dos outros; é quem não se cansa de observar “a vida se vivendo nele e ao redor dele”.

Ser cronista é estar disposto a se entregar ao “imprudente ofício de viver em voz alta”, é deter o poder humílimo de capturar o (extra)ordinário que pousa “no chão breve do cotidiano”.

Porque seu ofício é “catar o mínimo e o escondido”, é “recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano”, o cronista embarca todo dia numa “viagem prazerosa e vadia pelo rés-do-chão, sem preparativos e sem agendas”.

Cronistas são “pequenos Noés que, diante do dilúvio do esquecimento, lutam para salvar em suas frágeis arcas de papel” resíduos da vida que corre sem parar.

Para as galas do papel, o cronista persegue arranjos verbais capazes de provocar “insuportável delícia auditiva”, façanha reservada a todos os grandes desse gênero tido como menor, estando o enorme Rubem Braga na comissão de frente.

Ah, quem dera que eu também pertencesse a essa raça de “cães vadios, livres farejadores do cotidiano”! Não sei se eu, pequenino cão, estou apto a latir algo cronicamente viável e à altura dos latidos de uma linhagem nobilíssima que abriga verdadeiros cães de raça. Não será demasiada pretensão de um vira-letras sem pedigree querer juntar-se a essa linhagem?

O que sei é que devo pedir a bênção de todos os que citei nesta crônica e mais: Manuel Bandeira, Cecília Meireles, Paulo Mendes Campos, Rachel de Queiroz, Alcione Araújo, Ivan Ângelo, Conceição Freitas, João Ubaldo Ribeiro, Humberto Werneck, Xico Sá, Joaquim Ferreira dos Santos, Luís Fernando Veríssimo, Antônio Prata, Ana Miranda, Marina Colasanti, entre tantíssimos outros.

Com a bênção de todos esses mestres em guardar fragmentos de vida no estojo das palavras, digo: eu também quero ser cronista. Eu preciso abrigar meus latidos nas margens do papel. É questão de sina, talvez. Repare o raro leitor que trago o verbo “latir” no nome.


(PSiu – Segue a autoria do que está entre aspas, na ordem em que aparece no texto: Marlyse Meyer, Manoel de Barros, Drummond, Mia Couto, Affonso Romano de Sant'Anna, Mia Couto, Eustáquio Gomes, Fabrício Carpinejar, Manoel de Barros, Clarice Lispector, Rubem Braga, Alexandra Rodrigues, Machado de Assis, Fernando Sabino, José Castello, Alberto Manguel, Nelson Rodrigues e Marlyse Meyer. Vale esclarecer que as citações de Manoel de Barros [segunda citação] e Clarice Lispector tiveram de ser ajustadas por causa da estrutura de terceira pessoa em que foram inseridas).    

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