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quinta-feira, 2 de maio de 2013

ACESSO NEGADO


           


           Outro dia perdido. Ele passara a tarde retomando contatos, na tentativa de recrutar adeptos para o seu plano mirabolante. Algo tinha de ser feito, e urgentemente, pois o lugar parecia infestado de zumbis, mortos-vivos sem vontade, de olhar baço e inexpressivo. Ao contrário dos filmes, contudo, não havia forma de enfrentá-los, até porque eram assim há muito, muito tempo, e não haveria projéteis capazes de aniquilar forças que, além de estarem acima de sua compreensão, pareciam onipresentes. Trancou a porta do quarto 302 do motel de beira de estrada onde se escondera, e, colocando a cabeça entre asmãos, tentou avaliar a situação em que se metera.
           Ligou a tevê e viu as mesmas cenas dos mesmos filmes idiotas de sempre. Vendiam a imagem de um mundo bucólico e sem conflitos, com seres eternamente sorridentes, como nas antigas propagandas de leite desnatado. Mas isso era antigamente. Hoje não havia mais comerciais, pois o governo impunha os produtos a serem consumidos, e não havia similares à escolha. Com o passar do tempo, até mesmo os sabores se tinham uniformizado, e ele ouvia a avó recordar, saudosa, os tempos em que existiam – ela jurava que um dia tinha sido assim – pelo menos dez sucos de sabores diferentes. Ela contava ainda – muito embora ele não soubesse se isso era delírio ou mesmo um sintoma de arteriosclerose – que a carne era vendida em partes, e se podia inclusive consumir a gordura do animal. Ainda que isso não fizesse muito sentido e ele nem mesmo gostasse de carne, a lembrança da avó era uma das poucas coisas que ainda o faziam chorar, e ele decidira não submetê-las ao seu característico ceticismo.
           Chorar de vez em quando até que era bom. Desde criança, ele era um dos poucos de sua turma que não precisavam adquirir o simulador de lágrimas, lubrificante ocular necessário à maioria da população. Demorara a perceber que os outros não choravam diante do mar, ao ouvir música, ou mesmo com a morte de alguém. Uma vez perguntou o porquê disso à mãe, que o olhou, horrorizada. Depois, em tom de severa repreensão, aconselhou-o a jamais tocar no assunto, com quem quer que fosse. Poderia ser muito perigoso, dissera ela na ocasião.
          Crescera tentando entender o que se passava ali. Contudo, a atmosfera de normalidade que pairava sobre o lugar fizera-o perceber que era ele o estrangeiro, constatação imediatamente seguida pela certeza de que deveria reagir. Mal compreendeu o sistema, caiu na teia da clandestinidade, ainda que isso se resumisse a pensar, algo que mais ninguém por ali parecia fazer. Agora era um fugitivo, e temia, não tanto pelo próprio destino, mas por saber que, caso fosse apanhado, ninguém o substituiria, e aquele lugar cairia de vez na estagnação.
          Ouviu algo que poderia ser o som abafado de vozes perto da porta. Nem o cartão de crédito falso tinha sido suficiente para despistá-los, e eles surgiam, inclementes, em seus calcanhares. Já fora longe demais para retroceder. Como faria para escapar dali?
          O coração acelerado intensificava-lhe a respiração, que poderia ser o seu grande delator. Instintivamente, buscou o basculante pelo qual jamais pensaria em passar. Deixando para trás seus únicos pertences, escapou furtivamente pela minúscula janelinha do banheiro, até despencar na marquise e cair em cima de um carro estacionado nos fundos, para, então,  ganhar rapidamente a rua que dava para a lateral do motel. Por sorte, ainda que ferido, estava um passo à frente deles. Segundos depois, três homens invadiam o quarto, e percebiam, furiosos, que ele conseguira escapar novamente.
          Corria como se nunca mais pudesse parar, como se houvesse um cão raivoso em seu encalço, e sua vida dependesse disso. Pensava no modo de sair daquela cidade horrenda, sobre a qual vigorava uma espécie de maldição. Um emparedamento psicológico que paulatinamente convertia todos em autômatos, tendo sido ele aparentemente o primeiro a perceber isso. Mas há muito que não lhe davam ouvidos. De profeta – sim, houvera, certa vez, um pequeno grupo que tentara mudar – ele passara a proscrito, aquele a quem pareciam ter medo de lançar um olhar, como se ele, qual um leproso, tivesse o poder de contaminá-los, de lhes inocular o veneno da revolta. Desde que descobrira a tática de controle mental realizada naquele lugar, tornara-se o principal oponente daquele sistema. Daí para tentar conscientizar a população fora um passo natural. Criara um pequeno grupo, e tramavam um golpe quando quase todos foram apanhados, exceto ele.
         Sua doença era o inconformismo, e as marcas trazidas desde a infância não o deixavam esquecer – talvez isso fosse proposital – os suplícios a que fora submetido. Nunca conseguira descobrir como eles tinham feito isso. O controle exercido sobre as mentes dos indivíduos era total, e a única explicação plausível era a existência de um dispositivo implantado no cérebro, capaz não apenas de monitorar os pensamentos, mas também de controlá-los. Isso explicaria as descargas elétricas violentas que pareciam percorrer-lhe o corpo a cada pensamento perigoso, como diria a mãe. Apesar de seus conhecimentos de Biologia e de Química serem bastante restritos, sempre atribuíra esses choques a uma dose excessiva de adrenalina correndo em suas veias. Sendo, entretanto, uma manobra perversa com o objetivo de exercer o controle maciço sobre a população, o funcionamento desse possível implante assumia um caráter punitivo que só lhe atiçava a ânsia de se rebelar. No entanto, isso não explicava como alguns conseguiam manter o senso crítico, sem serem aniquilados por eles.
          Orgulhava-se de sua capacidade de reproduzir os tons de qualquer melodia, fielmente, mesmo só a tendo ouvido uma única vez. Talvez isso lhe desse uma proteção adicional, uma frequência cerebral diferente, o que interferia no funcionamento do dispositivo. Era ainda capaz de moldar, em qualquer material, as formas precisas dos objetos. Achava, no íntimo, que a arte o livraria da loucura, pois, nos momentos em que vinham os choques, bastava cantarolar baixinho Debussy, que tudo parava.
          Já tinha sido pior. Nas primeiras vezes, ainda na escola, lembrava-se de ter questionado uma atitude da professora, que se recusara a ouvir a sua opinião sobre determinado assunto. Isso foi antes de as aulas de História e de Filosofia terem sido abolidas. Começara então a gritar, e só se lembrava de ter acordado, horas depois, na enfermaria do colégio. Convulsões, dizia a ficha, muito embora ele nunca tivesse tido um episódio de epilepsia ou algo semelhante antes.
         Rapidamente percebeu que os choques vinham em momentos específicos, de revolta ou de indignação. Com o tempo, aprendeu a dissimular. Ainda assim, as ondas que pareciam fustigá-lo surgiam, moderadas a princípio e em seguida intensas, caso os pensamentos perigosos persistissem. Começou a entoar, como mantras, determinados trechos de música clássica. As de Wagner ou de Beethoven, descobriu com o tempo, pareciam acirrar a fúria dos choques. Tivera, então, de criar um ritual: se estivesse muito agitado, pensava em tranquilas e idílicas composições de Bach ou Debussy, e a paz retornava.
          Sua obstinação, contudo, não mudava. A ortodoxia do regime, com seus métodos cada vez mais brutais, ceifava as mentes críticas. Os procedimentos, ainda que fossem exemplares, não eram publicamente alardeados. Havia como que uma aura de mistério no próprio ritual da brutalidade, o que aumentava o terror em relação a ele, e, consequentemente, a sua eficácia. Em vez da ferida exposta, o que havia era o grudento emplastro, por baixo do qual o pus se alastrava, gangrenando o tecido até não haver mais possibilidade de cura. Isso explicava o fato de João, talvez o único amigo que parecia entendê-lo, ter sumido por uns tempos para reaparecer, calmo e de olhar perdido. Parecia buscar, na retina do interlocutor, as respostas que lhe tinham sido para sempre arrancadas. Ria agora de um modo quase idiota, uma risada ao mesmo tempo lenta e gratuita, mostrando que não havia mais ninguém ali com quem pudesse dialogar. Fosse lá o que tivessem feito ao amigo, não permitiria que lhe fizessem o mesmo.
          Continuava a correr, e ouvia, cada vez mais próximos, os gritos de seus perseguidores. Beirava a exaustão. As vozes aproximavam-se, confundindo-se umas com as outras. Correu para dentro de um terreno baldio cheio de escombros. Estava exaurido demais. Um barulho surdo e uma ardência nas costas fizeram-no perder os sentidos. Um outro choque pareceu reanimá-lo, antes de o prostrar de vez. A última coisa que viu foi o olhar de um homem que fora seu colega no colégio. Um garoto frio como os demais, mas que sempre parecia estar por perto quando os choques começaram. Agora entendia a quase antipatia que sentia por ele desde que foram obrigados a compartilhar a carteira na sala de aula. Isso antes de mergulhar na escuridão.
           Acordou amarrado a uma mesa, em um lugar que muito se assemelhava a um centro cirúrgico. Por meio das luzes que pairavam acima dele, viu que lhe tinham raspado uma boa parte da cabeça, o que lhe dava um aspecto semelhante à criatura do Dr. Frankenstein. Não conteve a gargalhada, e uma enfermeira, meneando a cabeça em sinal de censura, injetou mais um pouco do líquido que lhe estava sendo infundido. Buscando um resquício de sua força habitual, tentou livrar-se das amarras que o prendiam à cama, mas foi em vão. A enfermeira, que parecia adivinhar-lhe as intenções, foi mais rápida, e imobilizou-o.
          As vozes começaram a ficar mais fracas e distantes, entrecortadas, e ele apenas podia vislumbrar parte do que diziam: Nunca vi... minha vida; não creio... solução; ... como está. E foi então que tudo escureceu.
          Um violento tranco em seu corpo anunciou o choque. Tentavam reanimá-lo ou matá-lo de vez? Abrindo os olhos, piscou de forma maliciosa para a enfermeira, que não acreditava no que via. Recorreria a Debussy, e tudo ficaria bem. Como era mesmo a melodia? Não conseguia lembrar de forma alguma. Talvez até a música o tivesse abandonado. Pensou nos cavalos, que libertaria, um a um, até cavalgarem para bem longe, montados por belas Walquírias. Pensou nos companheiros de outrora, muitos dos quais desaparecidos, cujos nomes eles tentavam extrair dele. Novo choque. Abriria as jaulas e gaiolas, e firmou bem esse pensamento, para que não pairassem dúvidas.
         Outro choque, ainda mais intenso do que o anterior, fez-lhe o corpo pular. Atearia fogo àquele lugar maldito, assim que saísse dali. Mais um choque, e, subitamente, outras vozes surgiram, estas bem nítidas: Até tu, Brutus? Outro choque, especialmente violento: Pai, por que me abandonaste? Nesse momento, não havia mais melodia ou Cristo que o pudesse ajudar. Os antigos amigos acenavam-lhe e sorriam, agradecidos. O corpo contorceu-se convulsivamente, e a saliva começou a espumar no canto da boca, o que não o impediu de lançar um último sorriso irônico à enfermeira.
        Conseguira cruzar a fronteira. Tinha agora o controle nas mãos. Era livre.

 

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Tatiana Alves
Tatiana Alves é poeta, contista e ensaísta. Participou de diversos concursos literários, tendo obtido vários prêmios. É colaboradora da Revista Samizdat, já tendo escrito para os sites Anjos de Prata, Cronópios, Germina Literatura e Escritoras Suicidas. É filiada à APPERJ, à Academia Cachoeirense de Letras e à AEILIJ. Possui nove livros publicados. É Doutora em Letras e leciona Língua Portuguesa e Literatura no CEFET / RJ.

todo dia 02


1 comentários:

Assustador pensar que pudéssemos chegar a isso! Mas... Espera aí... E essa alienação que já toma conta de tantos? Credo, Tatiana, só de pensar numa sociedade assim já me deu vontade de cantarolar muito Debussy! Eu ia preferir resistir. O seu terrível mundo do futuro, monocromático e manipulador é, infelizmente, o sonho de muitas ditaduras. E a gente que não se cuide e cuide deste planeta pra ver! Texto muito bom, como sempre!

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