Ele tinha tudo para ser um erro, para
desfocalizar os limites e se aprimorar como a pior das intenções, vestir a
vulgar máscara da subversão e ruminar os escombros memoriais em penitência. Um
imundo celestial banalizado pelo próprio descuido. Cascatas costumavam brotar
das suas resignações despedaçadas, ajoelhamentos cínicos. Tímido prevalecido em
meio aos cacos funestos da família que o deixou respirar cinzas. Treze
miseráveis anos sucumbidos na ausência, na perversão de quem redemoinha defloramentos,
entranhas escondidas para o efeito de agradar civilizações conceituais. Na
última manhã acordou como quem procura um abraço para se resvalar no saudosismo
e bloquear a veracidade do tombo. Os olhos amendoados destoando à ternura,
apagado com o vazio de quem ainda não se principiou algo, vendido pelo medo de
transpor os dedos pela fresta dos sonhos. Reclinou o pesar e a cabeça sobre o
desconforto e chorou, chorou clamando piedade aos nomes mais conhecidos pela
estupidez humana, o desespero de se confinar ao imaturo. O quarto em lodo
falava por si só todo o esquecimento que se fez por escolha. Frases sigilosas
ajudavam a reconhecer um rosto deixado na poeira de alguma alegria maquiada. Um
segredo guardado a sete pedras brutas chacoalhando a precariedade diante do
despertar. Salientou-se triste. Permaneceu sentado procurando o que deveria ter
lhe abençoado. Levantou arrastando enigmas sobre a decomposição da puberdade.
Abriu a porta e estremeceu ao nevoeiro de aberrações fantasmagóricas que
ecoavam no corredor. Tempo atrás a figura materna passava-lhe trazendo um bom
dia, doçura e afeição. Debruçou na queda matutina toda a inconstância de não
poder ser amado, limitado ao desencadear tormentos. Estreitou-se todo manhoso,
fragmentou a sinergia dos órgãos vitais na temporalidade das doenças, praga
calada que o amordaçava terror. Arrastou-se até a cozinha. Não havia mais o
cheiro do café e nem o cheiro de alguém. Não havia mais nada além do que a
decadência de saber que não se pode estar no presente momento adequado ao
viver. Cadavérica alma faminta pelo toque de quem a ostentou por caridade. Tão
só quanto um egoísta alucinado quando ordenou o massacre de mil homens que
caíram à sua esquerda e dez mil à sua direita, ignorando o perdão para qualquer
ressentimento. Perplexo pelo acúmulo de ácido clorídrico transbordando do
peito. O sol nascia desencadeando transmutações e cores, afora ali dentro, onde
tudo ressaltava a ambiguação. Apressou-se para não se perder. Colocou o mesmo
par de meias do dia anterior, a mesma calça suja e batida, a mesma inexpressão
que o destino tinha lhe presenteado. Não comer pela fome não passava de uma
subjetividade, não queria mesmo sentir alívio em matá-la, no íntimo deseja ser
morto, não um suicídio por acovardar-se, mas uma lentidão prazerosa ao trincar
os olhos. Abriu a porta dos fundos, nunca encarou o lado de fora contemplando o
dia, completamente megafônico na quietude. O externo visto pela incredulidade é
a materialização do belo, pássaros nus, incandescências por todas as moléculas
do ar, mas ele não se importou, nunca tinha parado para ver bobagens
imaginativas. Seguiu o rumo dos hábitos corriqueiros. Até então não se tem mais
notícias sobre o seu paradeiro, ninguém sabe se ele parou no acostamento ou
buscou-se pelas vias. A mais recente língua víbora disse que ele passou quase
invisível se multiplicando em pegadas sutis, ignorando a altivez, mas deve ter
tomado a sábia escolha do oportuno, não voltar ao quarto das extremas sensações
desbotadas onde a tipologia do mundo aferroava sua lânguida natureza. Creio que
ele tenha se tornado a intensificação dos desprezares, camuflou-se entre as
epidermes e vez ou outra volta ao delírio das lembranças carregando a
individuação apática, sindrômico eremita, desapropriando o corpo e se enlaçando
nos gemidos, cultivando abomináveis sequelas etéreas. Coloco mais fé ainda em
pensar que ele achou a poética nos escombros corporais e em forma de
agradecimento unificou a repugnância amorosa aos espectrais ilogismos.
[Jason Shawn Alexander] |
2 comentários:
Um conto. Pura prosa poética. Forte. Chegou escancarando portas e janelas. Adorei o gênero, seu estlo, sua gramática impecável. Adoro intensidades.
Lindo
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