Chegou em casa puxando o cachorro pela ponta de um barbante improvisado
como coleira. Janete tão logo pôs os olhos no bicho, resmungou:
— Apartamento não é lugar prá cachorro! Já tenho trabalho por demais,
homem! Vou lá ser aia de um cão?
Adalberto
clamou pela compaixão da esposa. Encontrara o animal perdido e, em um ato de
piedade, o levara para casa. Que mal havia nisto? Seria uma companhia para os
dois, um casal sem filhos, beirando a meia-idade. Como a esposa mantinha-se
resoluta, apelou para os santos
— Por São Francisco, mulher!
Neste ínterim o cachorro, que se mostrara impassível durante a discussão,
escapou da coleira de barbante improvisada e correu em direção a Janete de
jeito festivo, abanando o rabinho cotó. Amolecida pelos carinhos do animal, a
esposa foi aos poucos cedendo. Que ficasse o pulguento. Adalberto poderia
dispensar a ajuda do santo protetor dos animais. O cão vencera.
Sentados no sofá, acariciando o
pelo do cachorro que se deitara entre os dois, Adalberto e a mulher começaram a
debater como chamariam o animal. Depois de abortarem algumas nomes, Janete
cismou por Ralf. Adalberto preferia Rex, todo cachorro se chamava Rex, não
convinha inventar mas, diante da insistência da esposa e temeroso de que a
contenda em torno do nome a fizesse mudar de ideia em relação a permanência do
bicho, Adalberto capitulou. Daria um tiro na cara de Janete caso descobrisse
que o nome escolhido remetia a recordações luxuriosas entre a esposa e seu
primeiro amante, um Padre alemão (ou austríaco, Janete nunca soube ao certo)
com quem ela descobrira as ciências do amor dentro casa paroquial. O casal se
amava após sermões do Padre, hipocritamente pregados no púlpito, carregados de
ameaças àqueles que, mesmo em pensamento, pecassem sensualmente. Colegial
inocente na época, Janete caiu de paixão pelo religioso. Sofreu o diabo quando
Padre Ralf foi enviado para a África. Por anos a fio, Janete imaginou que ele
havia sido devorado por supostos canibais. À noite, o seu sono era assaltado
por pesadelos. Acordava suarenta, mente agitada pelas visões de partes do corpo
do Padre Ralf, tão conhecidas, tão intimamente percorridas por ela, dilaceradas
por bocas antropófagas. Sim, o padre merecia a singela homenagem.
E o cãozinho conquistou o casal. Era gratificante para ambos ter alguém,
ainda que irracional, como objeto de um amor quase filial. Banhos, tosas,
roupinhas de cachorro, passeios pelo condomínio onde moravam. O único motivo de
discussão entre eles passou ser o prosaico privilégio que um acusava o outro
pelo zelo extremado a Ralf. O cão
agradecia a atenção recebida com chamegos.
Durante um dos incontáveis passeios com Ralf pelo condomínio, Janete
conheceu Rogério, um viúvo, aposentado, tipo atlético apesar dos sessenta,
também morador do conjunto residencial. Ele afagou Ralf que, de rabo abanando,
simpatizou com o viúvo. Cumprimentaram-se mecanicamente. “Belo animal”, disse
ele. “Obrigada”, retribuiu. E cada um tomou sua direção. Depois deste episódio,
sempre que Janete passeava com Ralf, Rogério cruzava seu caminho como por
encanto. Os monossílabos trocados no primeiro encontro metamorfosearam-se em
diálogos gentis e da simpatia nasceu a atração. Em pouco tempo Janete e Rogério
tornaram-se amantes. Sob a cumplicidade do cachorro, os dois se encontravam
fora dos limites do condomínio. Janete embarcava no carro do aposentado e Ralf
ia no banco traseiro. Nunca se soube que motéis aceitassem cachorros, tal fato
seria uma aberração, um verdadeiro culto à bestialidade. Permaneceu assim o
mistério do local para onde aqueles três personagens se dirigiam.
Adalberto começou a estranhar a maneira como a esposa passou a tratá-lo.
Tornara-se distante, fria, dispersiva. E aquele sorriso permanente? Qual o
motivo da alegria? A felicidade de Janete o incomodava. Fofoqueiras da
comunidade fizeram chegar aos seus ouvidos insinuações maldosas em relação à
fidelidade da uma certa esposa cujo cachorro passeava demais. Mesmo sem provas,
tornou-se ríspido com a mulher. Só a possibilidade de traição o desnorteava. Ela,
mais preocupada com sua nova paixão, sorria o seu sorriso de adúltera por todo
o condomínio enquanto desfilava por entre os blocos de apartamentos escoltada
por Ralf .
Um dia, ao chegar do trabalho já corroído pela desconfiança, Adalberto
decretou.
— De agora em diante quem leva o Ralf para passear sou eu!
— Vai me prender em casa?
— Só estou dizendo que vou levar o cachorro pra passear. Não posso?
— Claro que pode, se esta é a sua verdadeira intenção....
O pobre Adalberto segurou de forma
abrutalhada o rosto da mulher.
— Se for verdade que você me trai sua ordinária, eu não respondo por
mim...
— Pergunte ao Ralf! – zombou a mulher, livrando seu rosto daquela mão
suada.
Disposto a não cometer um desatino, Adalberto tomou a coleira e chamou
Ralf para passear. O cachorro prontamente o atendeu. E saíram os dois, com
estados de espírito opostos. O dono, exalando ódio e dúvida, o cão, felicidade
estampada no abanar da cauda. Deram uma volta pelo condomínio e Ralf arrastou o seu dono para o estacionamento. Em
meio aos inúmeros carros, Adalberto descobriu o de Rogério. O veículo estava
com as portas escancaradas. Dentro, o aposentado, espanador, nas mãos, tratava
da limpeza do estofamento. O viúvo desviou o olhar para não encarar Adalberto.
Era o amante, todavia mantinha seus pudores. Não era daqueles de desafiar
maridos traídos e exibir suas conquistas. Rogério poderia se dizer, tentava ser
discreto como um mordomo, daqueles que, diante de seus patrões parece
desaparecer, aglutinando-se a mobília de uma casa.
Acontece que Ralf, ao reconhecer Rogério, rompeu com força a coleira da
guia e, saltitante, correu em direção ao carro do aposentado, entrando e se
aconchegando no banco traseiro.
Aquele gesto do cão fez com que Adalberto fosse como que atingido por uma
bala. Explodia diante de si a prova da infidelidade de Janete. Até o cachorro,
que ele tanto prezava, o enganara. “Corno da esposa, corno do seu próprio cão”,
ruminou. Rogério empalideceu. Tentou se explicar, mas viu que as palavras
morriam em sua boca. Inesperadamente, Adalberto girou calcanhares e, bufando,
dirigiu-se para o bloco onde morava. Abriu a porta de com violência. Janete
estava na cozinha preparando o jantar. Diante de um marido rubro pelo ódio e
coleira na mão, ela escancarou os dentes numa risada indecorosa. Adalberto
saltou para cima de Janete e, sem ligar para os seus protestos e resistências,
amarrou a parte que restara da guia e da coleira no pescoço da esposa e a
arrastou para a pracinha central do condomínio. Juntou gente para ver a humilhação.
Meia dúzia protestava, outros apoiavam o modo como o marido punia a mulher
adúltera. Crianças riam e pulavam divertidas, sem ter a real compreensão do
dantesco espetáculo.
— Cachorra! Vagabunda! Vem dar uma voltinha, cadela no
cio! – vociferava Adalberto, exibindo a traidora pela coleira que na, tentativa
de resistir, teve o corpo arranhado pelo contato com o a aspereza do
calçamento.
Em meio ao tumulto, Rogério fugira no automóvel levando Ralf com ele.
Deste modo, o viúvo não presenciou o final
mexicano dos acontecimentos. Achincalhada perante os vizinhos, humilhada diante
de uma comunidade, Janete vingou-se com a originalidade que só algumas mulheres
são capazes de fazer. Aproveitou-se de uma mínima distração de Adalberto e
conseguiu enrolar a guia da coleira em torno do pescoço do marido. Apertou com
todas as suas forças, asfixiando-o. Os vizinhos ainda tentaram socorrê-lo, mas
a fúria de Janete impediu que eles conseguissem afrouxar o laço. Morreu ali
mesmo, na praça, olhos saltando das órbitas, boca espumando, ante o horror dos
moradores. Janete está presa. Agora é famosa. Um programa sensacionalista de
televisão a batizara como “O Monstro da Penha Circular”. Rogério reapareceu
meses depois e, portando sua costumeira discrição de mordomo, providenciou a
mudança. De Ralf, não há notícias.
1 comentários:
Ok!
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