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terça-feira, 12 de março de 2013

O Filho da Puta

Eu sou um filho de uma puta. Lá da Praça Tiradentes. Dona Margarida fez questão de me revelar isso quando me dei por homem. Mais um acidente de percurso, numa dessas esquinas. E minha natureza não enganava. Aos seis já me descobria sob a água fria do chuveiro. Com sete, desvirginava as coleguinhas da Casa das Irmãs. Ser fraterno porra nenhuma, eu queria ser macho. Pecado, lascívia... O castigo viria. Pois já era um castigo ouvir a voz esganada daquela freira. Órfãos estão livres desse tipo de penitência, eu dizia, e me trancava. Quando me destranquei, aos quinze, ganhei o mundo. Cansei de respirar a poeira do abandono. Fiz umas amizades suspeitas aos olhos suspeitos. Percorri ruas sujas, muito sujas. Os sinais vermelhos foram meus expedientes diários de trabalho.

            Meu desejo mais incontido era ir a um puteiro. Juntei dinheiro suficiente para um programa ralé e fui pra Sotero dos Reis. Os odores, as salivas, os orgasmos... Era como se eu tivesse vivendo a minha infância, meu berço. As novas não me interessavam, nem as balzaquianas. Passei a caçar puta velha. De 50 anos pra mais.

            Freud, num papo de boteco, me diria que eu desejava comer a minha mãe e eu, após uma golada de cerveja, riria, acenando um sim com a cabeça para aquele filho da mãe. Possuído por aquilo que já havia se tornado um objetivo, fui, boca a boca, descobrindo os pontos menos valorizados. Me chamavam de pão duro, doente. Eu só comia as coroas, e, por vezes, nem eu nem elas tínhamos banca prum motel à beira de estrada que fosse. Certa feita, numa linha de trem, tracei uma tal de Índia, devia ter uns sessenta. Magricela, um par de seios ultrapassando o umbigo, um rabo cheio de estrias. Uma índia velha, retirante de uma tribo dos idos de 70. Meia cidade já tinha comido aquela índia. Me rendeu uma gonorreia penosa e bem-vinda. Fui atendido por uma enfermeira peituda, que fez questão de me examinar com minúcia. Espantada com o tamanho do meu pau, ordenou que eu ligasse para ela assim que tivesse curado. Dito e feito. As espanholas foram sensacionais com aquela enfermeira, a... Nem me lembro mais o nome.

            Minha jornada continuava, à procura da mamãe. Investigava, queria saber sobre a vida delas. “Tá escrevendo um livro sobre puta ou o que, garotão?”, elas perguntavam. Adoravam relatar suas peripécias sexuais. A Rita de Cássia, da Quinta da Boa Vista, me contou sobre um gringo que a obrigou cagar em seu pau. Foi uma das histórias mais nojentas que já ouvi. Muitas nem me cobravam: o prazer de serem consumidas por um jovem cheio de saúde, 18 anos e bem dotado, cobria qualquer preço. Algumas serviam até café com leite quando me levavam pro muquifo delas.

            Aquela ideia incestuosa foi morrendo, aos poucos. Vai ver já tinha até comido a minha progenitora, e jamais saberia. Vai ver ela já tinha morrido de sífilis, ou mesmo saído do ramo. Ela teria me buscado se tivesse conhecido um gringo milionário que a bancasse?

            Consegui um emprego num lava-jato. Passei a economizar grana, fazer bico com consertos, aprendi a ser mecânico. Já numa oficina, dobrava os expedientes, sedento por aprender mais sobre motores. Conheci uma menina, uma frentista. Não era amor, não. Era coisa de verão, que se estendeu pr’outras estações. Morena linda, do tipo garota do Leme, só pra não plagiar o Vinicius. Me lembro de ter saído atordoado de casa e quase ser atropelado numa noite de terça-feira. “Tô grávida”, com as mãos apertando a barriga, em sinal de proteção.

            Se estivesse viva, minha mãe agora seria avó. Ela seria desvalorizada se essa notícia vazasse no ramo dela. Percorri ruas sombrias, pintadas de rímeis, e com toques sanguinários de batons. Olhei muitos rostos, muitos rostos... Queria poder dizer isso a ela, abraça-la. Órfã da vida... Em que orfanato ela estaria neste momento?

            Anos depois, revirando alguns baús e álbuns de retratos, redescobri páginas. Soltas, amareladas. Garranchos. Eram os meus relatos, do orfanato até as aventuras com as prostitutas na minha adolescência. O cheiro dos anseios passados me causou uma estranha nostalgia, daquelas que não se devia sentir. Decidi passar a limpo. Reescrevi tudo, e algo mais. Varei noites em claro, numa autobiografia que me fazia bem. Àquela altura eu já era divorciado e pagava pensão. Meu filho, de nove anos, era coroinha. Sabia passagens bíblicas de cor. Muito católico, ele. Puxou um ancestral bem distante.

            Um amigo, professor de Português, fez a revisão dos meus escritos e disse que faria de tudo para me ajudar a publicar aquela que, para ele, era uma história do caralho. Ele não diria isso em suas críticas politicamente corretas. Talvez se valesse do que ele chama de... Não me recordo agora. Só sei que é uma estratégia pra deixar o “caralho” com cara de “magnífico”. Quase um ano e meio depois, eu estava lançando “Filho da puta”. Proibido para: menores, carolas, pseudo-intelectuais, velhos, editoras de família, cafés literários, leitura em saraus... Quase barraram até mesmo a inscrição pra concorrer ao Jabuti. O Jabuti foi onda, claro. “Vai que um jurado c seja pervertido e dê um dez pra sua história?”, gozava o meu amigo cult. A Igreja repudiava, no entanto, as freiras que coordenavam o orfanato onde passei minha infância quase levantaram seus hábitos para mim de tanta felicidade ao receberem, em mãos, um cheque generoso, de lucros adquiridos da venda do livro.

            A autobiografia virou febre nacional, do tipo “Bruna Surfistinha”. Muitos especulavam, inclusive, que eu tinha comido a Bruna e que isso constava na trama. Foi uma propaganda de marketing não planejada que me rendeu muitos lucros. Passei a receber um número incontável de e-mails de coroas fogosas, insatisfeitas no casamento, à procura de um homem que soubesse atender todos os seus fetiches. Quando dei por mim, estava dando entrevista na televisão. “Eu nunca fui escritor. Essas histórias não são minhas”. E a plateia ria. Agora eu era engraçado e não sabia.

            A pensão aumentou, lógico. Minha ex era uma filha da puta, e isso eu dizia com gosto, embora nunca tivesse conhecido minha sogra. Se tivesse conhecido, talvez tivesse a comido antes de traçar a filha.

            Outro dia, no Catete, parei pra fumar um cigarro e fui abordado por duas quarentonas no cio. “Tem fogo, gostosão?”, “Vai um programinha pra relaxar nesse final de tarde?”, “Nós duas, isso porque você é gostoso, tem desconto”.

-Não, eu agradeço a oferta, mas no momento prefiro só terminar esse cigarro e ir pra minha casa.

-Tá sem grana, não tá? Isso não é problema pra gente.

            A de bunda mais rechonchuda tirou da bainha uma máquina de cartão.

-Aceitamos cartão.

            Como essa putaria se modernizou. Eu não podia deixar aquele fato passar em branco na história da minha vida. Passei o cartão e passei o rodo nas duas. Dividi em seis vezes sem juros. No fundo, o que mais me interessava era saber o que sairia escrito no recibo emitido pela máquina.

“Sexual Therapy S/A”

            Após degustar aquela piada, me lembrei do Freud, no botequim, e da minha antiga obsessão. Terapia, vejam só... Terapia... Por que não? No mínimo, daria assunto para um próximo livro.

            A psicóloga foi escolhida a dedo. Não literalmente, claro. Uma loira de parar a Presidente Vargas. Dizem que as primeiras sessões são como túmulos. O meu silêncio era de contemplação, e não de timidez ou nervosismo, conforme ela deduzia no silêncio dela. Aos poucos, o gelo foi sendo quebrado. Exceto a minha ereção. Ela notava, disfarçava, falando de transferência, carência, frustrações, etc. No fim das contas, acho que eu queria comer a minha mãe porque nunca mamei nos seios dela. Algo assim. Chega de gastar com esse papo furado. As putas do Catete foram terapeutas mais eficientes. Mas, antes, eu não podia deixar de fazer jus ao meu codinome.

- Já que a intenção é perder a timidez, eu quero te dizer uma coisa. Você é linda, você... Eu me casaria com você, doutora.

            Ela sorriu, e, sem perder a classe:

- Casar? Fora dos meus planos.

- Entendi... E quanto a transar? Isso faz parte dos seus planos... Humanos?

- Gozar é sempre a mesma coisa. Sempre igual. Uns podem ser múltiplos, ou não, mas isso não faz diferença para mim. A diferença é de quem você engole a porra no final. Você, que é tão experiente em putaria: quanto você acha que eu valho?

- Você me pegou de surpresa... Você vale uns... Vale uns dois mil?

- Você pagaria dois mil reais por uma noite comigo?

- Não. Com dois mil reais eu como dez putas e ainda sobra pro táxi.

- Então por que achou que eu te daria de graça quando eu poderia dar para um banqueiro e faturar uma grana extra? Como eu te disse, gozo é tudo igual. Mas a carteira...

            Carla Natasha, o nome dela. Eu sempre achei que Carla fosse nome de puta, e essa regra tem poucas exceções. Natasha, nem se fale. Uma puta composta. A vida está cada vez mais difícil para todo mundo. A Carla me traumatizou, me causou um dano psicológico irreversível e, ao mesmo tempo, reformador. Tomei repulsa de vadia. Passei a ver vadia em cada esquina da cidade, passei a sonhar com vadias sendo incineradas pela Santa Inquisição. A ouvir sermões do meu filho, já adulto, como padre. As freiras acariciando meus cabelos, contando as pedrinhas dos terços... Colocar o corpo à venda, coisa mais desprezível. Pecado, lascívia. Eu nasci da putaria, nasci na rua, nasci do pecado. Fui um mundano, um pervertido sexual. Cancelem a venda dos meus livros! Dizimem meus lucros, no sentido mais católico da palavra “dizimar”. Maldita história, maldito passado que me corrói. Culpa da mamãe. Maldita mãe. Quero mata-la, quero mata-la. 

...

            “Mulher de sessenta e dois anos é morta na Rua Sotero dos Reis, mais conhecida como Vila Mimosa, com cinco golpes de faca. Colegas da vítima revelam que Neusa Maria dos Santos era prostituta há trinta anos e foi uma famosa cafetina nos anos noventa. A polícia investiga as suspeitas e, pelas circunstâncias do homicídio, teme que este seja o primeiro caso de um suposto futuro serial killer”.


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7 comentários:

Texto forte e trabalhoso. Merecia uma revisão ortográfica.

Lohan, se eu não fosse puritano, iria dizer que é um texto do caralho!

Eu ando "comendo mosca", como se diz. Passei batido pelo seu dia e só hoje, conferindo com calma, vi o texto. Sensacional! Lembrei de Nelson Rodrigues, Plínio Marcos... Não entendo essa sua preferência em escrever poemas, viu! Com todo o respeito ao bardo que te habita, você é danado de bom numa prosa! Em tempo: Carla Natasha é demais!

No embalo do título, puta texto! Forte, contundente. Mas é triste, muito triste. E tem passagens antológicas, como: "Cansei de respirar a poeira do abandono" e, "Eu sempre achei que Carla fosse nome de puta, ... Natasha, nem se fale. Uma puta composta". Em suma, achei fantástico. Parabéns!

Obrigado, amigos, a todos vocês eu agradeço demais pelas considerações! Vocês me mantém no embalo literário.

Cinthia, dei um stop com os poemas e tenho me dedicado mais à prosa. Se está dando certo, só vocês mesmo para me dizerem!

Abração e até a próxima, dia 12.
Lohan

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