“(...)
Eu
fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios.
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios.
(...)”.
(Manoel
de Barros)
Sou um apanhador de desperdícios. Estou sempre disponível para ser
encantado com o extraordinário que se esconde nas dobras do
ordinário. Reparto com o raro leitor algumas histórias pescadas no
sempre caudaloso rio do cotidiano.
Estou na parada de ônibus. Começo a ouvir a conversa de três
mulheres. Se a conversa me interessa, e quase todas me interessam,
arranjo um jeito de ficar mais próximo, assumindo o risco da
indiscrição em favor da curiosidade. Logo percebo que são mães
com filhos internados no Caje – Centro de Atendimento Juvenil
Especializado. Apesar da imponência do nome, trata-se de uma espécie
de Febem. Ali são recolhidos menores infratores. As mães dividiam
entre si as aflições próprias de quem tem filhos nessas condições.
Todas muito pobres, um ar cansado, todas vindo de bem longe. Uma
delas falava da angústia que era chegar o sábado à noite e ainda
não ter conseguido dinheiro para o ônibus. Outra falava do aperto
no coração que era não poder ir, sabendo que o filho estaria
contando com a presença dela, a mãe. São todas mães muito
sofridas, mas não vi em nenhuma delas sinal de desalento diante das
circunstâncias. No rapidíssimo contato com aquelas mães pude ver
um pouco do que diz o poeta Affonso Romano de Sant’Anna: “Há
pessoas que, embora roxas de levar tanta pancada na vida, têm um
arco-íris na alma”.
* * *
É fim de tarde de domingo. Estou num shopping. À minha
frente, vejo um casal andando abraçado. Nada demais se o casal não
fosse pai e filho, e não fosse o pai estar em plena terceira
infância (calculo mais de 80 anos), e não fosse o filho estar
debutando na segunda infância (calculo uns 60 anos). E não era o
filho abraçando o pai como se o amparasse. Era o filho abraçado ao
pai (pelo ombro), era o pai abraçado ao filho (pela cintura). Refém
de cenas assim tão lindas, dou um jeito de ficar por perto, muito
disfarçadamente, para ver o que mais posso colher na superfície do
instante fugaz. E cuido de eternizá-lo na minha memória.
* * *
Na volta para casa, a pé, passo por um shopping. Nele
acontece todos os dias o evento “Um piano ao cair da noite". E
foi lá que vi a "menina" que dança. A "menina"
de que falo deve ter uns 70 anos, está sempre sozinha, está sempre
com umas sacolas, e sempre a encontro dançando. E dançando põe no
rosto o mais contente dos sorrisos. Fico cogitando: para que mundos
maravilhosos a música e a dança a transportam para ter no rosto
aquele sorriso!? Certo dia, ao passar por ela – que dançava
sozinha, como sempre –, temi ser tirado pra dançar. E se
acontecesse? Não podia recusar jamais. Talvez seu maior sonho seja
este: ser tirada pra dançar. Um outro dia a flagrei numa traição
inocente. Em vez do piano ao cair da noite, foi atraída pela música
de uns sanfoneiros que tocavam na entrada do shopping. Era a
única que dançava, sorridente e sozinha. Tenho pena dessa senhora
cujo nome não sei, que vem não sei de onde, com suas sacolas, com
sua vontade de dançar, com o seu sorriso. Reparei que as pernas
(região do tornozelo) estão um pouco escurecidas. Deve ser problema
de circulação. Reparei também que as costas estão bastante
encurvadas. Mas, quando dança, esses aparentes achaques não são
bastantes para apagar do rosto o mais feliz dos sorrisos. Palmas para
ela!
* * *
Guardada no bolso de certo sábado, uma surpresa me aguardava. A
caminho da parada de ônibus, ouço som de voz e violão. A dúvida:
será da parada que vem o som? A surpresa: sim. O violeiro que tocava
era, na verdade, um pedinte. Longe de ser um virtuose do violão,
via-se que tocava com alguma técnica, que tinha intimidade com o
instrumento. Quando cheguei na parada, ele estava no meio de uma
música. Empunhando o violão, o violeiro era pura entrega. Qual não
foi meu espanto ao reconhecer a música que ele tocava. Era “Pisa
na fulô”, do João do Vale, artista popular que teve o
reconhecimento dos grandes da nossa música. Sabendo disso, apurei
mais os ouvidos. E mais me encantei com seu canto, com o enlevo de
quem tinha no violão um companheiro. Terminada a música, pediu
ajuda à platéia presente na parada. Mas pediu de um jeito que não
era aquele pedido desesperado, urgente. Dessem-lhe o que pudessem, se
pudessem. Qualquer moeda tava bom. E repetia: “Somos todos irmãos”.
Havia no violeiro (negro, meio sujo, alguns dentes faltando) uma aura
zen, vinda talvez da profunda comunhão com a música. Feito o
pedido, ele partiu para a próxima música. Quando me decidi com
quanto o ajudaria, hesitando entre a generosidade e o que pensariam
os demais da platéia, ele já tocava outra música. Meu ônibus
chegando, ele teve de interromper o número para receber a moeda que
lhe dei – e não tive tempo de reconhecer a música da vez. Só sei
que vi naquele violeiro a perfeita tradução desses versos de
Caetano: “Como é bom poder tocar um instrumento!”.
Um olhar disponível e atento sobre o humano "invisível" no quotidiano. Gostei sobretudo do par abraçado no shopping.
ResponderExcluirObrigado pelo comentário, Joaquim! Mia Couto diz estar sempre disponível para ser encantado. É como me sinto.
ResponderExcluirAbs,
Tarlei
muito querido tarlei, quantas pérolas desperdiçadas .... quanta alegria ter um amigo que, sabiamente, faz a colheita de cada uma delas... para nossa reflexão. beijos em seu coração.
ResponderExcluirQue desperdício o quê! É desse captar cotidiano que vivem ou deviam viver os humanos. Um olhar aqui, outro acolá.. Quanta riqueza de vidas você nos trouxe nesse textos curtos e imensos! Meu predileto foi o da mulher que dança. Dança para embelezar a vida dura. Afinal, não é pelas artes que cada um de nós se liberta? Um piano, uma escultura, uma canção, um texto... e a gente esquece as tristezas por alguns instantes. Obrigada por trazer um quadro tão belo de textos!
ResponderExcluirem pense...
ResponderExcluireu sou portuguesa,e o nome Tarlei não me diz nada quanto ao sexo
daí, eu li tudinho a ver você no feminino
a ver como "ela" conhece bem a alma humana : ui! como "ela" sabe da alma da mulher envelhecida a querer ser menina! ui! como ela sabe das mães e dos seus filhos, doridos uns e outros...
e segui a lerdemuito gosto e nem recordando outro que eu tivesse lido: além de portuguesa, estou a ficar com falta de memória...e fui procurar quem era e o que eu já tinha lido, ou se não tyivesse como me sentiria em falta
e pasmo de lá no outro seu conto eu ter também achado muito feminino seu modo de contar
e aqui mesmo eu juro: nunca mais esqueço que você é Tarlei e é menino!
e como escreve!!!
que modo mais intenso de conhecer a gente e saber dizer isso a juntar as letras!
lhe agradeço e que me perdoe este meu querer separar o que não tem que ser separado
o "em pense" é erro :)
ResponderExcluirTarlei, meu caro, prazer!
ResponderExcluirPrimeira vez que eu o leio e adorei. Adoro fragmentos da realidade, mesclados a quês literários, a linguagens referenciais. Eu também chego a ser, às vezes, indiscreto, de tanto querer saber sobre a vida que vive ao meu redor. Ou melhor dizendo, parafraseando Marisa Monte, ''os universos ao meu redor''. Me identifiquei com tua escrita.
Grande abraço!
Lohan
Gostei muito desse olhar curioso e isento de juízos, Tarlei.
ResponderExcluirFragmentos belíssimos da vida cotidiana, Tarlei. E para não perder a intertextualidade, fez-me lembrar do antirromance pessoano "O Livro do Desassossego", esta coleção de desperdícios.
ResponderExcluirAguardarei suas próximas participações.
Abraços.
Querida Edna,
ResponderExcluirpara repetir uma frase da Clarice de que tanto gosto: pertenço à estirpe dos que não se cansam de olhar para "a vida se vivendo em nós e ao redor de nós". Obrigado pelas palavras!!
Abs,
Tarlei
Minha amiga Cinthia, que belezura de comentário! Você, sempre tão disponível para a generosidade e o acolhimento Muito obrigado!
ResponderExcluirAbs,
Tarlei
Querida Maria de Fátima,
ResponderExcluirnão faz mal nenhum que você me veja no feminino ou, para não perder o trocadilho, no femenino, ou indo além: no fé-menino... Tá tudo certo. Adorei seu comentário. Adorei este "e segui a lerdemuito gosto". E quanto a estar com falta de memória, creia: navegamos nas mesmas águas -- as águas do esquecimento.
Abs,
Tarlei
O prazer é meu, amigo Lohan!
ResponderExcluirObrigado pelo generoso comentário! Sofro de um encantamento pela vida menor -- enorme.
Abs,
Tarlei
De fato, mac, meus olhos são sempre atraídos para a vida que se espraia caudalosa. Obrigado pelo comentário!
ResponderExcluirAbs,
Tarlei
Caro Henry,
ResponderExcluirobrigado pelo comentário! A expressão "coleção de desperdícios" é perfeita (e precisa) para se referir a'O Livro do Desassossego. Adorei!
Abs,
Tarlei