Maria Inês envelheceu demasiado depois que ele partiu, e envelheceu,
assim como se encontra, rugas a juntarem-se umas nas outras, depois que lhe morreu
o filho, dizem que por terras de África.
De seu tem a casita e aquele bode que nunca mais morre.
E tem sempre uma cabra e duas galinhas.
É criação que ela mantém há muito ano, tantos que perdeu o
conto.
Se a cabra morre, ela compra outra, e vai rodando.
Nunca come.
Vende o bicho assim completo, mas apenas se calha aparecer
vizinho a dizer: então não aproveita? Mas Maria Inês mora naquele ermo. É caso
raro que aconteça. Enterra tudo no quintal.
Nunca o bode, que se eternizou rijo e barbudo como ela.
Se acontece uma das cabras dar-lhe o mal ou se morre de ser
velha e é Quaresma, ela não vende, nem dá, e comer nunca come. Enterra o animal
inteiro debaixo da figueira lampa e benze-se por alma.
E se em plena Páscoa Santa lhe dizem: então não aproveita?
Ela zanga-se, escorraça, grita. Baba-se de aflita. Dizem os miúdos
que sobem da aldeia para vê-la:
– Parece uma bruxa.
Maria Inês reveza também a criação de bico, mas não a come, e
nunca teve um galo. Maria Inês não faz criação, pelo contrário.
No baraço em que prende a cabra, em cada ano, mais precisamente
no dia onze de cada Fevereiro, enforca uma galinha.
Assim tal e qual, é como ela mata o animal.
Assim tal e qual, é como ela mata o animal.
É na data em que comemora bodas. É ela mesma que o diz enquanto
aperta o pescoço do bicho com o baraço:
– O meu pai casou-me com o Fernando faz hoje cem anos.
Perdeu-lhe o conto e arredondou para tantos.
E repete: “ o meu pai casou-me com o Fernando
faz hoje cem anos”, e é como se ela estivesse falando para um público,
e revira os olhos que já foram azuis-claros e agora estão quase transparentes.
Os meninos em casa das mães, apregoam:
– A bruxa não tem olhos.
E as mães sovam-nos porque não querem saber de bruxas e menos
ainda de mulheres abandonadas como dizem que foi a dona do bode e da cabra e
das duas galinhas. Que elas sabem, ora se sabem!
Nesse segundo mês de cada
ano, ao dia onze, Maria Inês dirá, desse modo, apertando o pescoço do
bicho.
Se a conversassem, se algum passante demorasse a escutá-la, o
que é apenas hipótese de quem escreve, ela diria que o marido emigrou, faz
anos, por terras que ela não sabe onde, e nunca mais voltou nem disse dele, a
deixá-la mal parida de um filho.
O que Maria Inês não contará, é que o dia onze
de cada mês de Fevereiro, ela não tem por certo que seja a data do seu
casamento, que ela bem sabe que, quando subiu ao altar pelo braço do pai,
já rompiam os dias mais compridos e despontavam papoilas pelos campos.
Seria Abril, mas Maria Inês, num dia em que o luto de marido vivo mais lhe
tenha pesado, ou porque o filho lhe berrasse mais que a cabra, ou por razão
outra que não sabe, nem saber disso vem ao conto, tomou para data de efeméride
o dia onze do segundo mês do ano.
Aqui para a gente que ninguém nos ouve: talvez essa tenha até sido
a data em que partiu o Fernando .
O certo é que nesse dia de cada ano, sem deixar que um só pingo
de sangue manche a terra do quintal que lhe deixou o pai, Maria Inês enforca o
animal de pena que trouxe por ali pastando um ano inteiro.
Hoje, será uma pedrês de crista vermelha, reluzente de
gorda.
A ave há-de estrebuchar ao aperto da corda, empinará o papo num
derradeiro cacarejo e, a estremecer o corpo como se lhe tivesse passado uma
aragem, há-de baloiçar ao ar as duas patas antes de ser apenas um monte de
penas que ali fica sossegado.
Depois, Maria Inês, a enterrá-lo no quintal, há-de persignar-se.
imagem de Ada Breedveld
8 comentários:
Como de algumas outras vezes, um texto teu – este – teve o desplante de me pressionar a garganta por dentro, o que eu travei quando pressenti que se preparava para me apertar também o saco lacrimal. Que diabo!
Para que possas discernir qual o condimento que apura o molho, posso dizer-te que foi exatamente a pequena frase: “Que elas sabem, ora se sabem!”
Acho que aí entrevi uma réstia do mundo escondido, mas real, dos sofrimentos das mulheres comuns, a um tempo vítimas e carrascas, controladoras das suas semelhantes, ao preço da autocensura, da frustração, da dor calada.
Não gosto muito desta tua personagem, dura, crua, mas é talvez das mais apelativas.
Um grito de revolta solta ao vento, em ventos que de mudança,mudam de rumo conforme os " VENTOS "...
Não, não seria mesmo uma personagem que agradasse aos homens, não é Joaquim? É dura, crua... Coisas de mulheres como ela e como as outras que "...sabem, ora se sabem". Essas são as mulheres que descem rasgando a garganta que se aperta para não chorar.
Fátima, enterrados embaixo da figueira desejos, anos, esperas, choros, olhos azuis, fernandos...
Belo demais. Intenso de dar dor nas unhas (eu sinto isso, não sei por quê) esse seu texto que não pude ler ontem porque nunca leio você com pressa, minha amiga! Você foi feita para ser absorvida linha a linha, palavra por palavra. Como um vinho ou um champanha que se beberica, mas nunca se toma às goladas.
Tocante. Essa é a palavra que melhor definie esse seu texto, como sempre, mais escrito no que insinua do que no que diz. Eu, como sempre, fã!
É difícil até comentar seus textos, Maria de Fátima, pois estão num outro nível de competência, que só nos resta sentar-nos num canto e admirá-los...
vocês me deixam boba companheiros!! obrigada, mas eu nem sei se mereço, e só não o digo porque vos aprecio demais :)
tu exageras, não, Joaquim?! :)
Ninguém exagera, porque é mesmo assim...Quem sabe ler nas entrelinhas bebe o texto e embriaga-se nele e com ele...
belo! Wellinton Souza
@souzawell
revista literária benfazeja
Site Concursos literários
Bravo | Web Design para escritores
Postar um comentário