Encontraram-se no aeroporto.
- Você por aqui?
- Coincidência boa.
- Semana passada, fila do consulado americano, certo?
- Era eu mesma, atrás de você. Muito prazer: Rosana.
- Muito prazer: Leo. Conseguiu o visto?
- Consegui. Na verdade, não estava ali por causa de visto.
- Como assim? Você é como eu? Gosta de filas?
- Sou antropóloga. Estudo o comportamento das pessoas em filas.
A passividade, a indiferença, a ansiedade, o respeito, o desrespeito,
fila tem de tudo.
- Também sou um observador do ser humano. Escrevo livros de bolso
ordinários. Olho para as pessoas e fico imaginando um monte de histórias.
- Sabia que até as Olimpíadas de Pequim não existia fila na China?
- Li sobre isso. Imagina. Uma muvuca de chineses querendo entrar no
coletivo de uma vez só.
- E você? Vai viajar para onde? Leonardo, não?
- Infelizmente o Leo é de Leovaldo, mas deixa pra lá.
Vou viajar para lugar nenhum. Vou até o check-in e volto.
- Eu também tenho essa mania. Achei que era a única doida no mundo.
Encontrei minha alma gêmea.
- Olha aquele executivo apressadinho. Vai comer o celular.
- E aquela ali, com cara de artista plástica deprimida. Que tal?
- Aquele tem cara de mágico de festa de criança.
- Onde?
- Atrás do baixinho, tipo corretor de seguros e bandeirinha
nas horas vagas. Está de óculos escuros porque levou um soco do
atacante. Impedimento mal marcado.
- Ih …aquela acabou de botar botox.
- É, Rosana, a boquinha arreganhada não nega.
- Ali. A mulher riponga com criança no colo querendo furar fila.
É mole?
- Não vai colar. O menino deve ter uns dez anos. A Janis Joplin esperta
vai voltar pro fim da fila.
- Ôpa! Chegou a nossa vez. Meia volta!
- Sai você na frente, Rosana, por favor.
- Obrigada pela gentileza. E agora, vai para onde?
- Banco e você?
- Previdência.
- Essa é das boas. Ótima fila.
- São pessoas idosas, curvadas e humildes, carcomidas pela vida,
sem esperança, sem futuro, só passado. Me sinto bem quando estou
perto delas.
- O que você faz, distribui sanduíches?
- Converso. Aliás, ouço mais do que falo. O que essas pessoas querem
é atenção, falar com alguém, reclamar, resmungar, contar suas vidas.
- Boa menina. Invejo seu espírito generoso. Mudando rumo da prosa,
topa um cinema à noite?
Tem um novo do Woody Allen.
- O filme é bom, já vi. Mas a fila é ótima.
- Combinado.
Rosana chega esbaforida.
- Desculpe a demora, Leo. Passei em uma noite de autógrafos.
Fila com vinho branco vagabundo.
- Relaxa. A lotação está esgotada. Só na última sessão.
- Maravilha. Temos fila de sobra.
- E depois, boa menina?
- Fila de restaurante!
- Topo! Tem um japa que inaugurou ali na praça.
Restaurante da moda. Vive cheio.
- É esse.
Leo consegue falar com a recepcionista com cara de gueixa.
- Mesa para dois, por favor.
- Cinquenta minutos de espera, senhor.
- Sem problema. Pode colocar meu nome no fim da fila.
Rosana está embevecida.
- Você é o máximo, Leo.
- Temos todo tempo do mundo.
- Coitado daquele sujeito sozinho. Sabe, tenho uma dó danada de
quem numa sexta-feira sai para jantar sem ninguém.
- Que nada, Rosana, ele vai encher a carranca de saquê e mexer
com a garçonete nissei. O sushiman, que tem caso com a garçonete,
vai passar a faca na orelha dele. E servir com shoyo no papel laminado.
- Você é mau, Leo. Me mata de rir.
- Olha o casal ali. Ela impaciente, ele com cara de saco cheio.
Não trocam uma palavra.
- Por que se arrumam e saem para jantar com essas caras amarradas?
Casamento arrastado. Não tem mais assunto. Nem para brigar.
- Mas jantar fora sexta-feira é sagrado.
- Pois é, amigo. Tem louco para tudo.
- Ao contrário dos entediados, aquele casalzinho não para de se beijar.
- Também reparei, Leo. Beijos demorados, intensos. Só de olhar,
fico excitada. Por que não vão direto para um motel?
- O que você disse, boa menina?
- Sei lá…beijos intensos… excitada… motel… sei lá.
- Você me deu ideia. Depois de uma barca de afrodisíacos japoneses…
- Assim, sem mais nem menos?
- Por que não? Sexta-feira os motéis estão cheios. Fila automotiva
que não acaba mais. Dá tempo de sobra pra gente se conhecer.
- Você e seus argumentos. Temos muita fila para pensar no seu caso.
O carro para. Os dois recostam o banco e se viram um para o outro.
Ela tira a sandália, dobra as pernas, subindo acidentalmente a saia.
- Pronto. Quarenta minutos até pegar a chave da suíte.
- Melhor impossível, Leo.
- Acho engraçado ver os carros saindo.
- Reparou? Saiu um casal de óculos escuros. Uma hora da manhã. Pode?
- Lá vem mais um. Ó, é a mulher quem dirige.
- Vai ver que ela é quem paga o motel. Safado.
- Olha no retrovisor, Rosana. O casal de trás não para de gesticular.
Estão brigando?
- Nada mais reconciliador que um motel.
- Ou não. Vão entrar e brigar até ela enfiar o garfo na jugular dele.
Ela vai esconder o corpo no porta mala e sair sozinha cantando pneu.
- Olha lá. O carro da frente. O cara também está sozinho. Cadê a mulher?
- A mulher está com a cabeça abaixada, Rosana. Não dá pra ver.
Repara como o braço dele sobe e desce.
- Meu Deus, como sou tolinha!
- Tolinha… tolinha… que nada! Você deve ter uma fila de caras rastejantes,
um atrás do outro, esperando a vez.
- Eu, hein? Acho que você nem tem fila. Tem uma muvuca igual na China,
só de fêmea sedenta se estapeando, se pisoteando, para ver quem chega
primeiro.
- Fêmea sedenta é bom. Gosto disso.
- Precisa falar assim? Tão pertinho da minha boca?
- Pre-ciiiii-sa, vem cá, fê-me-a se-den-ta.
Enfim.
Foi Rosana quem retomou a palavra. Aos suspiros, ao pé do ouvido.
- Hummmm beijo gostoso, abraço gostoso, mão gostosa, gosto gostoso.
- Desconfiava disso desde a fila do consulado, boa menina.
- A fila andou.
- A minha ou a sua?
- A nossa! Olha pra frente, Leo! Não tem ninguém.
O cara de trás está piscando farol.
- Inveja.
- Stress.
- Gente maluca.
- Não sabem aproveitar a vida.
E ali mesmo, na cancela do motel, encostaram o carro no recuo da
calçada à meia luz, deixando passar uma fila imensa de casais convencionais
e apressados. Nem se perturbaram com os olhares curiosos.
domingo, 20 de janeiro de 2013
Na fila
por José Guilherme Vereza
4 Comentários
4 comentários:
Mais um texto aprazível, não sei se você gostará do adjetivo… Desta vez, duas personagens com uma mania inesperada, mas num enredo, mais uma vez, a cutucar as fantasias masculinas. Ainda mais, dá-nos o consolo de um final feliz, sem ninguém ser chutado para um fim de fila qualquer.
Outra coisa: também passou a ser um gosto ler a sua biografia.
Meu caro Joaquim
Sua palavras são sempre bem colocadas, energizantes e... aprazíveis! Dá vontade de nunca parar de escrever.
A-do-rei! Dei tanta risada que nem me lembro qual foi a última vez que ri assim, este riso bobo, lendo alguma coisa! Seu texto é super criativo, divertido, leve. Você devia criar um seriado com esses dois personagens! Valeu! Recomendo contra mau-humor, depressão e afins!
Ótimo texto!
Mas gostaria de avisar que a bio do José está meio errada:
A partir da terceira frase, ela passa de primeira para terceira pessoa!
Abraço.
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