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domingo, 20 de janeiro de 2013

Na fila


Encontraram-se no aeroporto.

- Você por aqui?
- Coincidência boa.
- Semana passada, fila do consulado americano, certo?
- Era eu mesma, atrás de você. Muito prazer: Rosana.
- Muito prazer: Leo. Conseguiu o visto?
- Consegui. Na verdade, não estava ali por causa de visto.
- Como assim? Você é como eu? Gosta de filas?
- Sou antropóloga. Estudo o comportamento das pessoas em filas.
A passividade, a indiferença, a ansiedade, o respeito, o desrespeito,
fila tem de tudo.
- Também sou um observador do ser humano. Escrevo livros de bolso
ordinários. Olho para as pessoas e fico imaginando um monte de histórias.
- Sabia que até as Olimpíadas de Pequim não existia fila na China?
- Li sobre isso. Imagina. Uma muvuca de chineses querendo entrar no
coletivo de uma vez só.
- E você? Vai viajar para onde? Leonardo, não?
- Infelizmente o Leo é de Leovaldo, mas deixa pra lá.
Vou viajar para lugar nenhum. Vou até o check-in e volto.
- Eu também tenho essa mania. Achei que era a única doida no mundo.
Encontrei minha alma gêmea.
- Olha aquele executivo apressadinho. Vai comer o celular.
- E aquela ali, com cara de artista plástica deprimida. Que tal?
- Aquele tem cara de mágico de festa de criança.
- Onde?
- Atrás do baixinho, tipo corretor de seguros e bandeirinha
nas horas vagas. Está de óculos escuros porque levou um soco do
atacante. Impedimento mal marcado.
- Ih …aquela acabou de botar botox.
- É, Rosana, a boquinha arreganhada não nega.
- Ali. A mulher riponga com criança no colo querendo furar fila.
É mole?
- Não vai colar. O menino deve ter uns dez anos. A Janis Joplin esperta
vai voltar pro fim da fila.
- Ôpa! Chegou a nossa vez. Meia volta!
- Sai você na frente, Rosana, por favor.
- Obrigada pela gentileza. E agora, vai para onde?
- Banco e você?
- Previdência.
- Essa é das boas. Ótima fila.
- São pessoas idosas, curvadas e humildes, carcomidas pela vida,
sem esperança, sem futuro, só passado. Me sinto bem quando estou
perto delas.
- O que você faz, distribui sanduíches?
- Converso. Aliás, ouço mais do que falo. O que essas pessoas querem
é atenção, falar com alguém, reclamar, resmungar, contar suas vidas.
- Boa menina. Invejo seu espírito generoso. Mudando rumo da prosa,
topa um cinema à noite?
Tem um novo do Woody Allen.
- O filme é bom, já vi. Mas a fila é ótima.
- Combinado.

Rosana chega esbaforida.

- Desculpe a demora, Leo. Passei em uma noite de autógrafos.
Fila com vinho branco vagabundo.
- Relaxa. A lotação está esgotada. Só na última sessão.
- Maravilha. Temos fila de sobra.
- E depois, boa menina?
- Fila de restaurante!
- Topo! Tem um japa que inaugurou ali na praça.
Restaurante da moda. Vive cheio.
- É esse.

Leo consegue falar com a recepcionista com cara de gueixa.

- Mesa para dois, por favor.
- Cinquenta minutos de espera, senhor.
- Sem problema. Pode colocar meu nome no fim da fila.

Rosana está embevecida.

- Você é o máximo, Leo.
- Temos todo tempo do mundo.
- Coitado daquele sujeito sozinho. Sabe, tenho uma dó danada de
quem numa sexta-feira sai para jantar sem ninguém.
- Que nada, Rosana, ele vai encher a carranca de saquê e mexer
com a garçonete nissei. O sushiman, que tem caso com a garçonete,
vai passar a faca na orelha dele. E servir com shoyo no papel laminado.
- Você é mau, Leo. Me mata de rir.
- Olha o casal ali. Ela impaciente, ele com cara de saco cheio.
Não trocam uma palavra.
- Por que se arrumam e saem para jantar com essas caras amarradas?
Casamento arrastado. Não tem mais assunto. Nem para brigar.
- Mas jantar fora sexta-feira é sagrado.
- Pois é, amigo. Tem louco para tudo.
- Ao contrário dos entediados, aquele casalzinho não para de se beijar.
- Também reparei, Leo. Beijos demorados, intensos. Só de olhar,
fico excitada. Por que não vão direto para um motel?
- O que você disse, boa menina?
- Sei lá…beijos intensos… excitada… motel… sei lá.
- Você me deu ideia. Depois de uma barca de afrodisíacos japoneses…
- Assim, sem mais nem menos?
- Por que não? Sexta-feira os motéis estão cheios. Fila automotiva
que não acaba mais. Dá tempo de sobra pra gente se conhecer.
- Você e seus argumentos. Temos muita fila para pensar no seu caso.

O carro para. Os dois recostam o banco e se viram um para o outro.
Ela tira a sandália, dobra as pernas, subindo acidentalmente a saia.

- Pronto. Quarenta minutos até pegar a chave da suíte.
- Melhor impossível, Leo.
- Acho engraçado ver os carros saindo.
- Reparou? Saiu um casal de óculos escuros. Uma hora da manhã. Pode?
- Lá vem mais um. Ó, é a mulher quem dirige.
- Vai ver que ela é quem paga o motel. Safado.
- Olha no retrovisor, Rosana. O casal de trás não para de gesticular.
Estão brigando?
- Nada mais reconciliador que um motel.
- Ou não. Vão entrar e brigar até ela enfiar o garfo na jugular dele.
Ela vai esconder o corpo no porta mala e sair sozinha cantando pneu.
- Olha lá. O carro da frente. O cara também está sozinho. Cadê a mulher?
- A mulher está com a cabeça abaixada, Rosana. Não dá pra ver.
Repara como o braço dele sobe e desce.
- Meu Deus, como sou tolinha!
- Tolinha… tolinha… que nada! Você deve ter uma fila de caras rastejantes,
um atrás do outro, esperando a vez.
- Eu, hein? Acho que você nem tem fila. Tem uma muvuca igual na China,
só de fêmea sedenta se estapeando, se pisoteando, para ver quem chega
primeiro.
- Fêmea sedenta é bom. Gosto disso.
- Precisa falar assim? Tão pertinho da minha boca?
- Pre-ciiiii-sa, vem cá, fê-me-a se-den-ta.

Enfim.
Foi Rosana quem retomou a palavra. Aos suspiros, ao pé do ouvido.

- Hummmm beijo gostoso, abraço gostoso, mão gostosa, gosto gostoso.
- Desconfiava disso desde a fila do consulado, boa menina.
- A fila andou.
- A minha ou a sua?
- A nossa! Olha pra frente, Leo! Não tem ninguém.
O cara de trás está piscando farol.
- Inveja.
- Stress.
- Gente maluca.
- Não sabem aproveitar a vida.

E ali mesmo, na cancela do motel, encostaram o carro no recuo da
calçada à meia luz, deixando passar uma fila imensa de casais convencionais
e apressados. Nem se perturbaram com os olhares curiosos.


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José Guilherme Vereza
Carioca, botafoguense, pai de 4 filhos. Redator, publicitário, professor, roteirista, escritor, diretor de criação. Mais de mil comercias para TV e cinema. Uma peça de teatro: “Uma carta de adeus”. Um conto premiado: “Relações Postais”. Um livro publicado “30 segundos – Contos Expressos”. Mais de 3 anos na Samizdat. Sempre à espreita da vida, consigo modesta e pretensiosamente transformar em ficção tudo que vejo. Ou acho que vejo. Ou que gostaria de ver. Ou que imagino que vejo. Ou que nem vejo. Passou pelos meus radares, conto, distorço, maldigo, faço e aconteço. Palavras são para isso. Para se fingir viver de tudo e de verdade.
todo dia 20


4 comentários:

Mais um texto aprazível, não sei se você gostará do adjetivo… Desta vez, duas personagens com uma mania inesperada, mas num enredo, mais uma vez, a cutucar as fantasias masculinas. Ainda mais, dá-nos o consolo de um final feliz, sem ninguém ser chutado para um fim de fila qualquer.
Outra coisa: também passou a ser um gosto ler a sua biografia.

Meu caro Joaquim
Sua palavras são sempre bem colocadas, energizantes e... aprazíveis! Dá vontade de nunca parar de escrever.


A-do-rei! Dei tanta risada que nem me lembro qual foi a última vez que ri assim, este riso bobo, lendo alguma coisa! Seu texto é super criativo, divertido, leve. Você devia criar um seriado com esses dois personagens! Valeu! Recomendo contra mau-humor, depressão e afins!

Ótimo texto!

Mas gostaria de avisar que a bio do José está meio errada:
A partir da terceira frase, ela passa de primeira para terceira pessoa!

Abraço.

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