Poucos romances se tornaram tão revelantes e universais ao longo dos séculos como "Les Misérables", de Victor Hugo.
Terrivelmente atual em 1862, quando foi publicado originalmente numa França turbulenta, ainda esmagada pelas sombras da Revolução, de seus subsequentes Anos de Terror e frequentes revoltas e tumultos.
O lema iluminista de "Liberdade, Igualdade e Fraternidade" serviu de inspiração para outros movimentos revolucionários ao redor do mundo e moldou os princípios que viriam a nortear a Modernidade.
Victor Hugo era um dos filhos da Revolução e seus livros são quase monografias, defendendo algumas teses bastante evidentes.
Em "Les Misérables", dois temas se cruzam e dialogam: o primeiro, do ex-prisioneiro Jean Valjean, condenado a 19 anos de trabalho forçado e que, ao tentar se reintegrar à sociedade, é perseguido por um oficial da Lei, Javert, um sujeito que não acredita que um bandido possa se recuperar; o segundo, é o do próprio espírito revolucionário, das batalhas necessárias que devemos empreender pela causa da justiça, mesmo que isto nos custe a vida.
O fato é que não é fácil resumir uma obra que se estende por muitas centenas de páginas em seus cinco volumes, muito menos é a tarefa de adaptá-la para o cinema ou para um musical.
Mesmo assim, "Les Misérables" já foi transposto para o cinema, TV e teatro várias dezenas de vezes, sendo que a melhor adaptação que já vi foi de uma série televisiva com Gérard Depardieu no papel de Jean Valjean, e John Malkovich no de Javert. Em suas 6 horas, há tempo o bastante para explorar a complexidade da obra de Hugo, ainda que não seja o suficiente para explorar todas as sutilezas.
Talvez por isto que a adaptação para um musical, primeiro em Paris, depois em Londres e Nova York, tenha sido recebida com reações negativas da crítica, apesar do sucesso popular.
Pois "Les Miserábles" ainda continua atual, ainda fala sobre os injustiçados, os pobres e esquecidos, sobre aqueles que não tiveram oportunidades, para quem falta um teto ou comida e que acabam tendo que se rebaixar aos mais profundos dos poços, abrindo mão da dignidade e daquela centelha de moral que nos caracteriza como humanos.
Victor Hugo escreveu sobre os pobres e miseráveis de uma França oprimida pela ganância e indiferença de monarcas e governantes, mas hoje poderia estar escrevendo sobre os soropositivos esquecidos de rincões da África, ou sobre as prostitutas infantis nas favelas de Mumbai, pois a miséria ainda está viva, ainda está presente em nossa sociedade.
O musical preserva a essência da obra de Victor Hugo, apesar de suas muitas pontas soltas. Através da música é possível expressar emoções que nenhuma cena ou descrição são capazes, e é nesta tecla que bate "Les Misérables - O Musical".
Eu não era um grande fã de musicais, logo confesso, por isto, não fui ver "Le Miz" na Broadway. Tornei-me um apreciador posteriormente, quando a peça já não estava mais em cartaz. Por isto, esperei ansioso a ousada adaptação deste musical para o cinema, dirigida pelo britânico Tom Hooper.
O elenco não era dos mais estimulantes. Excetuando Hugh Jackman, que iniciou sua carreira em musicais e se consagrou em West End, eu não associaria nenhum dos outros grandes nomes do elenco principal, como Anne Hathaway e Russel Crowe, a um musical.
Nada poderia me preparar para o (talvez) maior fenômeno cinematográfico dos últimos anos.
O maior mérito não está na adaptação, nem neste enredo tão conhecido, mas na inovação na hora de gravar as trilhas musicais. Ao invés do habitual, de realizar a gravação das canções em estúdio e depois tocá-las em playback no set de filmagem para que os atores sincronizassem as vozes, o diretor optou por gravar as trilhas ao vivo, durante as próprias cenas.
Isto pode parecer um detalhe insignificante, porém proporcionou um realismo e uma carga dramática às performances como jamais vi antes em um musical. Depois disto, estas mesmas canções em estúdio parecem desprovidas de alma.
A melhor atuação de todas é, sem dúvida, do desespero de Fantine (Anne Hathaway) ao atingir a pior degradação possível. Após, é impossível pensar na canção "The dream I dreamed" sem ser na voz dela.
Por outro lado, como era de se esperar, Hugh Jackman não decepciona, com alguns momentos de brilhantismo e, por incrível que pareça, até Russel Crowe mostra a que veio. Já a grande surpresa foi a estreante Samantha Barks, no papel de Éponine, possivelmente a maior revelação deste filme.
Esta nova versão de "Les Misérables" quer que nós nos sintamos deploráveis, até culpados por termos comida na mesa todos os dias e ainda assim reclamarmos por causa de dinheiro. Talvez esta tenha sido exatamente a intenção principal de Victor Hugo em sua época, estapear a cara da burguesia francesa que enchia seus cofres, enquanto nas portas de suas casas pessoas morriam de fome.
Talvez os miseráveis sejamos realmente nós, com os corações endurecidos, incapazes de enxergar um palmo diante dos olhos, sem nos compadecermos com o real sofrimento dos outros.
A Literatura não tem, nem deve ter, obrigação de ser educativa, mas, sem dúvida, há muito a se aprender com os sofrimentos de Jean Valjean, Fantine, da pequena Cosette e de toda a legião de necessitados que bate às nossas portas.
Quiçá o grande poder da escrita seja o de atravessar séculos e mais séculos e ainda nos tocar diretamente, revelando-nos, às vezes, que aquilo a que damos tanto valor nem sempre é que há de mais valioso.
3 comentários:
Muito boa resenha, Henry!
Sempre tive curiosidade sobre esta obra e nunca sequer a folheei. Este musical me despertou ainda mais curiosidade, não vejo a hora de seu lançamento no Brasil.
A Anne foi indicada a coadjuvante, creio que ela leve (pelo o que pude notar no vídeo...).
Abraços!
Lohan.
Ainda estou em dívida com "Os Miseráveis". E a sua resenha, Henry, com enfoque em mais uma adaptação cinemotográfica, realça a importância da leitura desse clássico e desperta o interesse pelo filme. Excelente!
Pelo que antevejo, trata-se de uma obra prima que flana absoluta pela literatura, pela Broadway, pelo cinema e certamente
vai virar um blue ray eterno na minha cabeceira.
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